Dentes e cuecas - João Pereira Coutinho
Política

Dentes e cuecas - João Pereira Coutinho


FOLHA DE SP - 21/02/12



É inevitável não rir: tempos atrás, li na divina "Literary Review" um artigo hilariante sobre a importância das relíquias sagradas na Europa medieval.

A importância das ditas era imensa -para a propagação da fé e para a encenação dos ritos. Mas era igualmente importante para que as igrejas proclamassem a sua fama, o seu poder -e atraíssem oferendas dos peregrinos de todo o continente.

Neste regime de concorrência entre igrejas, onde cada uma publicitava as suas melhores relíquias como os grandes museus de hoje publicitam os seus acervos, havia guerras ocasionais.

E alguns episódios bizarros: contava Jonathan Sumption, autor do artigo, que, no século 12, são Hugo, bispo de Lincoln, não se teria portado condignamente quando pernoitou na abadia francesa de Fécamp.
Tomado pela ganância das relíquias, foi apanhado pelo anfitrião, ao meio da noite, a tentar arrancar o dedo do alegado braço de Maria Madalena.

Quando o dedo insistia em não sair, são Hugo tentou arrancá-lo com os dentes: primeiro, com os incisivos; depois, com os molares. A história horrorizou os prelados franceses, mas são Hugo não mostrou arrependimento.

É inevitável não rir, disse eu. Mas é injusto fazê-lo: o culto de relíquias sagradas foi recuando no Ocidente laico a partir do século 18.

Mas os homens, "animais religiosos" por definição, sempre tiveram horror ao vazio. Como dizia o sapiente Chesterton, quando os homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam simplesmente em qualquer coisa.

Revisitar a história do século 20 é encontrar a influência que as "religiões seculares" (expressão de Raymond Aron para o comunismo e o nazifascismo) tiveram sobre a vida de milhões de seres humanos. Mas não é preciso ir tão longe para identificar versões abastardadas de fé religiosa na alma dos contemporâneos.

Hoje mesmo, com o café da manhã, encontro no "Sunday Telegraph" uma lista generosa com algumas relíquias bizarras que têm aparecido em leilões. Relíquias de celebridades, entenda-se, com particular destaque para dentes e dentaduras.

Informa o jornal que uma coroa dentária de Elvis Presley poderá chegar aos R$ 28 mil em próximo leilão. Não seria inédito. O dente molar que John Lennon teria oferecido à empregada doméstica foi vendido por R$ 53 mil em novembro passado.

Mas o melhor da lista é a dentadura postiça de sir Winston Churchill, arrebatada há uns anos por R$ 41 mil. Infelizmente, ninguém me avisou a tempo. Empréstimo bancário é para isso mesmo.
Quem não gosta de dentes, pode sempre optar pelas cuecas que John F. Kennedy usou durante o serviço militar (vendidas em 2001 por modestos R$ 9 mil); ou então por um set com três chapas de raio-X de Marilyn Monroe. Data: 1954. Preço: R$ 77 mil. Pormenor: as chapas são do peito de Marilyn, o que talvez explique o preço inflacionado.

Regresso ao artigo de Jonathan Sumption, que cita são Tomás de Aquino: na Idade Média, as relíquias sagradas reuniam três qualidades fundamentais -continuidade, espiritualidade e abertura à dádiva divina.
Por outras palavras, as relíquias permitiam aos peregrinos manter o contato com os mortos; observar representações tangíveis da alma do santo; e, mais importante, canalizar a fé (e os pedidos terrenos) para um objeto potencialmente milagroso.

São qualidades que passaram dos peregrinos de ontem para os fãs de agora: quem compra a dentadura de Churchill não espera apenas um contato sensível com o seu ídolo; espera também que as qualidades milagrosas de sabedoria, coragem e resiliência, exibidas por Churchill na Segunda Guerra Mundial, possam também transitar de gengiva para gengiva.

Por isso aviso: se você, leitor, é pessoa famosa e com legião de seguidores, não se esqueça de ir fazendo o enxoval: dentes, unhas, cabelos, eventualmente dedos ou membros inteiros -tudo serve.

E roupa também: eu, pelo sim, pelo não, tenho acumulado desde a infância as fraldas e as cuecas que acompanharam o meu crescimento. Os dentes e a língua, só por cima do meu cadáver. Literalmente.
Com sorte, os meus descendentes terão a vida garantida pela paciência de santo do avô.



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