A idéia de revisar o princípio da Lei da Anistia
revela a falta de foco do ministro da Justiça
Diogo Schelp
Amicucci Gallo |
AMPLA, GERAL E IRRESTRITA Passeata no Rio de Janeiro, em agosto de 1979, pede anistia aos presos e exilados políticos. A lei foi fruto do pacto que iniciou o processo de abertura política |
Trabalho não falta ao ministro da Justiça, Tarso Genro. A Polícia Federal enfrenta um processo de balcanização sem precedentes, espiões oficiais grampeiam ministros, o tráfico de drogas faz explodir os índices de criminalidade e, nas delegacias dos quatro cantos do país, o pau-de-arara ainda é método de interrogatório. Mas Genro, infelizmente, é um homem sem foco. Tanta coisa urgente com que se preocupar e ele encasquetou revisar a Lei da Anistia, promulgada há quase três décadas. Revisar só para um dos lados, enfatize-se. Quinze anos depois da instauração do regime militar no Brasil, generais e opositores chegaram a um acordo que permitiria iniciar o processo de abertura política, sem maiores solavancos. Esse acordo foi a Lei da Anistia, assinada em 1979. Para que fosse ampla, geral e irrestrita – e não parcial, como queria boa parte da caserna –, reuniram-se políticos, estudantes e trabalhadores naquele que foi o primeiro movimento coordenado da sociedade civil depois do golpe de 1964. Graças à anistia, conquista intensamente festejada por todos os democratas, puderam voltar ao país ou sair da clandestinidade José Serra, Fernando Gabeira, Leonel Brizola, José Dirceu e Franklin Martins, entre outros exilados ilustres e nem tanto. A legislação zerou o jogo, cancelando a punição a criminosos políticos, terroristas e também, como contrapartida, aos torturadores que, nos porões da ditadura, supliciaram adversários do regime. Ampla, geral e irrestrita, repita-se, foi um daqueles atos de pacificação interna dos quais é pródiga a história das nações.
A Lei da Anistia viria a sofrer modificações. Em 1985, na mesma emenda que convocou a Assembléia Constituinte, o então presidente José Sarney deliberou que fossem concedidas as devidas promoções a servidores civis e militares cujas carreiras houvessem sido interrompidas pelo arbítrio. A Constituição de 1988 estendeu o benefício a empregados do setor privado e sindicalistas. Em 1995, sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, concedeu-se às famílias de mortos e desaparecidos políticos o direito de receber indenizações. Também foi organizada uma comissão para o reconhecimento dos desaparecimentos. Em 2001, uma lei, substituída por outra em 2002, ampliou a reparação aos danos causados pela ditadura, autorizando o pagamento de indenizações, em caráter retroativo, inclusive àqueles cujas carreiras tivessem sido prejudicadas (o que ensejou, como não poderia deixar de ser, a entrada de muitos oportunistas na fila dos casos analisados pela Comissão de Anistia, criada pelo governo para fazer essa avaliação). Os acréscimos à lei original amparam-se no fundamento de que, não importa o regime de ocasião, o estado brasileiro é responsável pelos indivíduos que estão sob sua guarda, devendo zelar pela sua integridade física e mental. O outro fundamento invocado é aquele segundo o qual está vedado ao estado interferir negativamente na vida profissional dos cidadãos. Com as mudanças, as compensações pagas pela União somaram 2,5 bilhões de reais entre 2001 e 2007.
Nenhum dos acréscimos, contudo, feriu o princípio da Lei da Anistia de 1979. A saber: o perdão a todos os cidadãos acusados de cometer crimes políticos, mesmo os mais torpes, não importa se do lado do regime ou da oposição. É tal o princípio – negociado arduamente por todos os que lutavam para restabelecer a democracia no Brasil – que Genro quer atingir. Ele defende a punição dos torturadores a serviço do regime militar. Quanto aos terroristas de esquerda que mataram, roubaram, seqüestraram e mutilaram, esqueça-se que lutavam pela implantação de uma ditadura comunista. Esqueça-se que recebiam apoio de Cuba e da então União Soviética – afinal, eles eram de esquerda e isso bastaria para inocentá-los, na visão de Genro, proveniente das mesmas hostes.
O ministro da Justiça já havia levantado o assunto em agosto, no que foi desautorizado pelo presidente Lula e contestado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim. Sua mais recente tentativa de impor uma leitura partidária da Lei da Anistia foi motivada por um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que considerou prescritos os crimes com motivação política praticados durante a ditadura, inclusive a tortura. O parecer da AGU nada mais é que uma peça de defesa em uma ação movida pelo Ministério Público, que tem entre seus réus a própria União (os outros réus são os militares Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, este já falecido, ambos acusados de tortura nas masmorras do DOI-Codi paulista). A decisão final sobre o tema não virá da AGU, mas do Supremo Tribunal Federal, que analisa duas ações contestando a anistia a agentes da repressão militar envolvidos em tortura e no desaparecimento de presos políticos. Sem falar especificamente sobre esses casos, o presidente do STF, Gilmar Mendes, alerta para o perigo de ideologizar o tema da anistia. "Estão tentando analisar uma questão de direitos humanos do ponto de vista apenas daqueles que lutaram contra o regime." Ele aponta três aspectos que foram deixados de fora. O primeiro é que a chamada luta armada dos grupos de esquerda pode, sim, ser classificada de terrorismo, sobretudo nos episódios em que vitimou pessoas alheias ao embate político. O segundo é que, assim como a tortura, o terrorismo é crime imprescritível. Por último, há o fato de que, embora tortura e terrorismo sejam imprescritíveis, nada impede que tais práticas sejam anistiadas.
Os comentários do presidente do STF escancaram a tentativa de Genro de reescrever a história, em benefício de seus pares ideológicos. O ministro da Justiça disse que a luta armada foi uma opção política respeitável. Além de omitir que a guerrilha tinha seu próprio projeto autoritário de poder, Genro não menciona que os atentados, seqüestros e assaltos não eram o único caminho existente para contestar o regime militar. Havia meios pacíficos, como a militância no movimento estudantil e no partido de oposição, o MDB. A ditadura deixou cerca de 400 mortos e desaparecidos. Quanto aos grupos de esquerda armados, estima-se que tenham matado 150 pessoas, das quais 100 eram civis, vítimas de execuções ou bombas.
É óbvio que nada justifica a covardia do pau-de-arara, do choque elétrico, da palmatória e dos outros métodos abomináveis usados pelos torturadores. "Mas, com a lei de 1979, tanto os crimes cometidos em nome do regime como os que tinham por objetivo derrubar o governo foram anistiados", reforça o jurista Ives Gandra Martins, ex-integrante da ONG de direitos humanos Anistia Internacional. "A tentativa, três décadas depois, de fazer uma punição seletiva é um gesto de vingança, não de justiça." Nos últimos anos, Argentina e Chile optaram por revogar suas leis de anistia e deram andamento à punição de alguns dos responsáveis pelos crimes de suas ditaduras. São situações distintas da do Brasil, onde a magnitude da repressão foi bastante inferior, ainda que não se possa subestimar a dor das chagas individuais. Nesses países vizinhos, o trauma dos períodos de exceção foi tão profundo que o clamor por um acerto de contas se manteve constante. Em relação à Argentina, as leis de anistia vieram depois do fim da ditadura, como uma maneira de evitar o risco de novos levantes militares. Não houve, como no Brasil, uma transição negociada para a democracia. "Para desfazer o acordo sacramentado pela Lei da Anistia, é preciso estar disposto a começar uma caça às bruxas em direção aos dois lados", diz o general Gilberto Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar. "Se isso acontecer, vai ser mais fácil identificar os responsáveis por atos de terrorismo do que os agentes do estado, porque os arquivos do regime não identificam os torturadores." Genro tem mais que fazer.