Há quem desconfie, com as ressalvas e incoerências inerentes ao
personagem, que o presidente Lula já se deu conta de que a candidata
Dilma Rousseff não correspondeu às expectativas dele e, cada vez mais,
é do agrado da oposição. A seu ver, já se dissipou o saldo favorável
que aliviou a constrangedora atmosfera em que se envolveu pessoalmente
no caso do terceiro mandato.. A candidatura Dilma pegou de galho e
aliviou as costas presidenciais da suspeita de que ele estava por trás
da iniciativa, por falta de paciência para esperar a sucessão de 2014.
Suspeita-se, pela descontração presidencial, que Lula se enfarou de
ser bedel de candidaturas espalhadas por todo o país. A distância que
está aumentando entre o presidente e a campanha de dona Dilma
significaria, na melhor das hipóteses, que Lula leva em consideração
outros aspectos que desconsiderou antes. Eleição é areia movediça. A
distância que vai se interpondo entre Lula e a campanha está aberta a
interpretações tanto naturais quanto sobrenaturais. É verdade que a
candidata tem feito por onde ser reavaliada enquanto for tempo.
Falta-lhe, de modo geral, o que em francês fluente os poliglotas
chamam de physique du role. Ou, em bom português, no caso, a
recomendável bossa para empreitada eleitoral.
Lula percebeu em tempo que era caminho sem volta deixar correr no
Congresso a emenda constitucional, já com numero suficiente de
assinaturas e o ostensivo patrocínio do próprio vice-presidente em
exercício áulico. Tratou de cair fora. Retirou, ainda cru, da boca da
oposição, o pão do continuísmo que não ia atenuar a fome de democracia
na opinião pública quando (por acaso?) se expandia como gripe a ideia
sul-americana de outorgar ao eleitor o poder de permitir aos
governantes, de acordo com a conveniência de cada um, mais de dois
mandatos consecutivos.
Desse ponto de vista, Lula acertou na mosca que zumbia na sua insônia.
Poucas vezes, na história deste país, um governante soube sair tão
lépido de uma armadilha. A troca do plebiscito pela candidatura
feminina arquivou tanto o mensalão de triste memória quanto o terceiro
mandato, de odor venezuelano, que fez republicano da gema torcer o
nariz com empáfia cívica. Afinal, o Brasil foi, mas não se orgulha
disso, o reformador das ditaduras tradicionais, com a associação do
rodízio dos presidentes e a eleição indireta. Uma ditadura arejada
pelo revezamento de presidentes e um bipartidarismo simplificador (um
no poder e o outro eternamente na oposição). Funcionou enquanto foi
possível e, quando deixou de ser, a oposição foi para o poder. Tudo
voltou a ser como sempre foi. O passado fez o exercício de casa e, de
modo redundante, continuou. Sem alarde e sem acerto de contas.
O efeito realmente novo, seis mandatos depois de eleições indiretas e
diretas, veio a ser a candidatura Dilma Rousseff, que deu cobertura a
Lula para se recompor com o alto juízo em que se tem e que o autoriza
a zombar da oposição como se a sucessão fosse uma peça de Luigi
Pirandello. Não é, mas passa perto do princípio pirandelliano, segundo
o qual "assim é se lhe parece" e pelo qual se estrutura a vida
representativa brasileira. E, se assim parece ao próprio Lula, muito
mais ao petismo, pois se trata de solução respeitosa à democracia, e
republicana sem deixar de ser à moda brasileira. Ficou subentendido,
nos dois últimos anos do segundo mandato de Lula e no nascimento da
candidatura Dilma Rousseff, o que poderia perfeitamente ser definido
como rebolation, para elidir o intervalo entre o mensalão e a
sucessão.
Este faz de conta democrático preencheu o vazio de ideias políticas à
altura das necessidades, mas não autoriza otimismo segundo o qual é
página virada o apelo ao retrocesso democrático, em nome da
necessidade de evitar riscos inerentes à democracia.
Do lado oficial, sem obras para mostrar, a candidatura de uma figura
feminina de forno e fogão na sucessão contribuiu para conter os
petistas e o petismo. O saldo social dos dois mandatos transcorridos
tem mais peso histórico do que político. Lula demonstrou ser
perfeitamente possível reduzir a desigualdade social sem colidir com a
democracia. O resto de dois mandatos foi, em boa parte, zelar pela
herança da social-democracia que precedeu o petismo e ainda sobra para
quem chegar lá.