O assunto é sério, está bem, mas não deixa de ser divertido ver o Congresso se atropelar todo, se sujar mais um pouco para abrir 7.343 vagas de vereadores e terminar ele mesmo atropelado, sem os vereadores pretendidos.
Tirando os graves malefícios impostos à República pela ausência de 7 mil novas excelências em câmaras municipais país afora, é de se comemorar o feito. Muito bem feito (nos dois sentidos), aliás, uma espécie de vingança coletiva à indiferença do Parlamento à opinião geral contra uma medida fútil, oportunista e de afronta à decisão anterior da Justiça.
Não há crise, retaliação, demonstração de tirania, pirotecnia nem grandeza na atitude da Mesa Diretora da Câmara que devolveu a emenda ao Senado dez horas depois de aprovada; de madrugada, como convém aos atos sorrateiros.
O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, seria a última pessoa com autoridade para aceitar a promulgação da emenda da forma como foi remetida à Câmara. Depois de adiar por dez meses o cumprimento da determinação judicial para a cassação do deputado Walter Brito por infidelidade, sob o argumento de que precisava cumprir todos os ritos, não poderia ignorar as normas do Legislativo.
Ele talvez nem tenha feito essa ilação. O mais provável é que tenha sido alertado pela assessoria técnica para a impossibilidade de se promulgar uma matéria cujo teor foi alterado pelo Senado.
Há o temperamento do Chinaglia, mas há também o regimento. Este foi ignorado pelos senadores que prefeririam ter da Mesa da Câmara a tolerância companheira. Devem ter raciocinado assim: se em maio a Câmara já havia aprovado a recomposição da maioria das vagas de vereadores cortadas pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2004, teria todo interesse em passar por cima de detalhes a fim de propiciar um início de ano legislativo mais robusto aos vereadores por decreto.
Ocorre que para tudo na vida há um limite. Até nos ambientes mais permissivos existem regras a serem seguidas. Em maio a Câmara aprovou as novas vagas, mas impôs redução do porcentual de repasse de verbas municipais para as câmaras. O Senado retirou a restrição, separou esta parte, deu a ela o nome de “PEC paralela” e jurou por Deus que resolveria a questão em fevereiro. Com os edis já empossados, claro.
A emenda que chegou à Câmara na quinta-feira para promulgação era, óbvio, outra, diferente da aprovada sete meses antes pelos deputados. Cabe na cabeça de alguém que eles pudessem simplesmente carimbar a modificação feita pelo Senado por um ato da Mesa?
Na cabeça dos senadores coube perfeitamente, tal o grau de desrespeito a que se chegou no Brasil. Acharam naturalíssimo fazer a Câmara de despachante. E ainda se sentiram afrontados. O presidente da Casa, Garibaldi Alves, anunciou mandado de segurança junto ao Supremo e falou até em “confronto”. Os senadores desaforaram o presidente da Câmara o dia todo no plenário e invocaram agressão às suas prerrogativas.
Palhaçada seria o termo adequado, não fosse a expressão muito ligeira, insuficiente para definir uma cena em que se fala em altivez, se clama por respeito, se discursa em nome da correção, enquanto tudo em volta recende a sordidez.
Se enfrentamento há é pelo troféu da desfaçatez galopante. Parar o Congresso Nacional por causa de 7 mil cadeiras em câmaras municipais aprovadas a toque de caixa e a poder da pressão de suplentes de vereadores (com prefeitos, deputados estaduais e governadores por trás, evidentemente) é algo de uma irresponsabilidade, de uma pequenez, de uma vulgaridade inimagináveis entre gente civilizada, no sentido de civilidade.
E o pior é que as coisas ainda ficarão bem piores. Sempre pode surgir alguém com a idéia de autoconvocação do Congresso para resolver a questão dos vereadores. Mas, mesmo que não surja ou que o bom senso rechace a idéia, ou que ela seja juridicamente inócua, ainda há toda a briga na Justiça pela frente, haverá a aprovação final da emenda e haverá a tentativa dos suplentes de tomarem posse em algum momento de 2009.
O que o episódio revela também é a perda da capacidade do Parlamento de bastar-se como poder.
O vácuo nas ações legislativas já vem sendo ocupado pelo Judiciário, desde que o TSE e o Supremo decidiram fazer a parte que lhes cabe no latifúndio institucional.
Agora o Congresso não está mais conseguindo resolver uma questão regimental entre as suas duas Casas. Precisa recorrer ao STF. O Senado quer obrigar a Câmara a assinar algo e, para isso, atravessa a Praça dos Três Poderes para buscar socorro.
O argumento é que o presidente da Câmara devolveu a emenda sem “falar” com o presidente do Senado, que, por sua vez, busca um advogado como fazem partes em litígio sem condições de diálogo.
Desprovido da capacidade de parlamentar, depois de perder a energia para legislar e de abrir mão do rigor na função de fiscalizar em nome de acertos constantes, o Poder Legislativo é uma instituição oca.