Política
É preciso que paulistanos e paulistas façam as perguntas fundamentais sobre as causas das enchentes.
Problemas estruturais agravam cheias
Faltam piscinões e mapeamento de áreas de risco, mas lixo nas ruas e chuvas atípicas há de sobra
RESÍDUOS – Lixo se acumula nas calçadas da Avenida Pacaembu
“Miserável estado em que se acham os Rios Tietê e Tamanduateí, sem margens nem leitos fixos, sangrados em toda parte por sarjetas, que formam lagos que inundam esta bela planície.” A frase, que poderia muito bem ter sido publicada nas páginas deste jornal nas últimas semanas, foi escrita ainda em 1820 por José Bonifácio, quando enchentes já eram um problema na vida de São Paulo. Assim como esse, outros relatos denunciaram, década após década, a precariedade dos rios paulistanos e a falta de ação dos governos. E assim como relatos, também outros problemas foram se empilhando e aumentando os efeitos das inundações, transformando as “águas mansas” que encantaram os fundadores de São Paulo no maior flagelo dos paulistanos.
Com a ajuda de especialistas, o Estado listou os principais fatores que causam uma enchente tipicamente paulistana. A cada gestão, Estado e Prefeitura se acostumaram a culpar apenas a chuva. Chega a hora da eleição, e acenam com obras grandiosas que resolverão o pesadelo das enchentes – projetos que vão de piscinões à construção de barragens. No entanto, os problemas que precisam ser enfrentados são muitas vezes mais básicos. E com soluções menos eleitoreiras.
MACRODRENAGEM
O aprofundamento e alargamento da calha do Rio Tietê foi apontado por especialistas nos anos 1980 como a principal medida para combater os transbordamentos em suas margens – a obra só foi concluída em 2005. Embora não haja unanimidade, a solução defendida por muitos para reduzir os alagamentos nas margens do rio é tirar do papel os piscinões previstos no Plano de Macrodrenagem do Departamento de Água e Energia Elétrica (Daee), órgão gestor dos recursos hídricos do Estado.
O plano previa 134 piscinões para a Grande São Paulo, mas pouco mais de 40 construídos desde a concepção do conjunto de medidas, em 1998. A capacidade atual permite armazenar 8,5 milhões de metros cúbicos de água – o restante do projeto poderia quase quadruplicar a capacidade. Os especialistas dizem que os piscinões são importantes para impedir que a chuva que cai nos afluentes chegue ao Tietê, provocando os transbordamentos. Como em mais de uma década houve mudanças na estrutura da cidade, teve início no fim do ano passado uma revisão no Plano de Macrodrenagem.
ÁREAS DE RISCO
É certo que os deslizamentos de terra são um fenômeno da natureza de difícil controle. Mas, dizem os geólogos, eles só representam uma ameaça porque há pessoas morando em encostas. Daí a importância de se mapear as áreas de risco. A cidade de São Paulo tem as suas. Mapeamento feito entre 2002 e 2003, identificou 522 setores, dos quais 285 (54,5%) apresentavam risco alto ou muito alto de escorregamento. A estimativa era de que, nesses locais, existissem à época cerca de 11.500 moradias. Algumas das obras recomendadas – e até exigidas pelo Ministério Público – para reduzir os riscos de deslizamentos foram feitas pela Prefeitura. De lá para cá, porém, não se sabe em que situação se encontram as antigas áreas de risco, tampouco se novas surgiram.
“O ideal seria atualizar o mapeamento das áreas de risco a cada estação chuvosa, ou seja, uma vez por ano. A situação desses terrenos é muito dinâmica”, afirma Kátia Canil, chefe do Laboratório de Riscos Ambientais do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Embora a Prefeitura tenha contratado no ano passado um novo estudo, o fato é que a cidade de São Paulo conta hoje com um mapeamento desatualizado em sete anos. “Além de indicar as ações preventivas, esses estudos são ferramentas fundamentais para nortear a política habitacional da cidade”, diz Kátia.
ASSOREAMENTO
Os 70 grandes rios, córregos e galerias que deságuam no Rio Tietê, junto com as 569 galerias pluviais e de drenagem, contêm, juntos, pelo menos 364,7 mil toneladas de areia e lixo acumulados nos leitos. Os dados do Daee revelam os efeitos de anos e anos de terraplenagem, de erosão nas periferias e do descaso de governantes e de moradores da região metropolitana.
Para se ter uma ideia, mais de 3 milhões de m³ de terra são despejados anualmente nos rios de São Paulo, o que corresponde a 250 mil caminhões. No ano passado, o Daee retirou 400 mil m³, mais de 30 mil caminhões, trabalho que custou R$ 27 milhões ao Estado. O déficit é claro. Um dos motivos do assoreamento é a ocupação irregular – das 1.600 favelas da capital, 600 estão perto de leitos d”água ou de encostas. Dos 870 loteamentos de baixa renda na cidade, 217 estão na beira de córregos ou em avenidas de fundo de vale, próximas dos rios.
LIMPEZA URBANA
De forma regular, o volume do entulho descarregado nos aterros da Prefeitura chega a 2,6 mil toneladas todos os dias. Ao todo, de forma regular ou clandestina, são 5,6 mil toneladas por dia. O governo municipal já admitiu que tem enormes dificuldades para fiscalizar e executar, ele próprio, a limpeza urbana em São Paulo. Tanto que foi anunciado neste mês um novo modelo de contrato para o serviço de varrição na capital – as duas empresas que ganharem a licitação da varrição vão assumir também a limpeza dos bueiros e a operação dos locais de destino do entulho, de responsabilidade municipal. A assinatura do novo contrato será em novembro. Até lá, a cidade terá de conviver com a deficiência no serviço de limpeza.
METEOROLOGIA
Além da falta de estrutura para enfrentar condições adversas, a capital e outras regiões paulistas sofrem com uma chuva atípica, que teve início na metade do inverno e passou a provocar estragos a partir de outubro. Um dos responsáveis por esse comportamento é o fenômeno El Niño – o aquecimento das águas do Oceano Pacífico. E sua consequência direta é a grande ocorrência de chuvas frontais em detrimento das tempestades de verão.
“As chuvas frontais são prejudiciais quando se trata de alagamentos, porque são mais persistentes e generalizadas que as de verão, abrangendo uma grande área da cidade ao mesmo tempo, enquanto as de verão são pancadas isoladas”, diz o meteorologista da Climatempo Marcelo Pinheiro. Com a ocorrência de precipitações mais uniformes na cidade, aumenta a possibilidade de cheia nas bacias dos afluentes e todos vão desembocar no Rio Tietê
Leituras do Favre
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