E se os políticos tivessem livros de reclamações?
Política

E se os políticos tivessem livros de reclamações?



E se quem neles votasse pudesse ter algo como “se não ficar satisfeito, devolvemos o seu voto”? Ou “se encontrar um melhor político, nós oferecemos a diferença”.

Vem este devaneio a propósito de um fenómeno que não deixa de ser paradoxal nos dias que correm: ao mesmo tempo que os cidadãos adoptam (e bem) uma postura cada vez mais exigente na defesa dos seus direitos enquanto consumidores, assiste-se ao badalado crescente alheamento político da generalidade da população. Ao mesmo tempo que vemos os cidadãos rapidamente reagirem caso um LCD ou um telemóvel que tenham comprado avarie durante a garantia, a postura perante um corte salarial ou a perda de um qualquer direito económico, social ou até mesmo político tende a ser contemplativa. Mas porquê tal discrepância de posturas? Porquê um cidadão consumidor tão activo em contraste com um cidadão político tão conformado?

Como parece evidente, a defesa de um direito de consumo é algo pessoal, é algo que mexe directamente no bolso do cidadão. E se este não reagir, ninguém o fará por ele. Logo, caso algo corra mal, este cidadão consumidor hesita cada vez menos em pedir o livro de reclamações, em desancar o funcionário que lhe presta o serviço ou a pedir até para falar com o gerente. Porque a ele, ninguém engana ou, dito até de forma mais simples, a ele ninguém o faz passar por parvo.

Curiosamente, a nível político, tal grau de exigência parece pura e simplesmente desvanecer-se em franjas cada vez maiores da população. Questões que não afectem em exclusivo tal cidadão, questões da coisa pública, de governança ou questões de direitos, passam a ser vistas como inatingíveis. A indignação existe, mas não dá lugar à acção por não se vislumbrar um retorno imediato de tal esforço.

O fenómeno acima é apenas mais um dos resultados de uma sociedade pautada pelo individualismo. Uma sociedade em que a defesa de direitos comuns, numa lógica solidária, é de facto encarada como quase exótica. Ou seja, as causas de tal fenómeno não constituem novidade. De qualquer modo, independentemente dos juízos de valor que possam ser feitos a este respeito, importa que a política também se consiga adaptar a este individualismo crescente dos cidadãos. E importa também que se aprofundem mecanismos democráticos que possam dar feedback imediato aos cidadãos.

Se calhar têm de ser encontrados livros de reclamações para os cidadãos insatisfeitos com os seus representantes. Se calhar importa aplicar medidas de qualidade que melhorem o desempenho democrático. Se calhar importa encontrar equivalentes políticos aos dois anos de garantia a que os consumidores têm direito quando adquirem um produto. Não se trata de defender uma democracia do consumo. Mas não querendo recorrer a lugares comuns, parecemos chegar sempre à mesma conclusão: a democracia tem de conseguir dar maior feedback aos seus cidadãos. Tem de continuar a profundar mecanismos para melhor responder à sua participação. Tem de compensar o seu esforço participativo. Tem de ser criativa e exigente consigo própria, pois só assim conseguirá inverter a perigosa tendência de alheamento perante a coisa pública.

Artigo hoje publicado no Esquerda.net
(Imagem: Rede Telemática de Informação Comum)



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