O fantasma que ronda as manifestações em curso no Rio ganhou carne e osso em vídeos mostrando a ação de prováveis infiltrados da Polícia Militar no protesto de segunda-feira nos arredores do Palácio Guanabara.
Algumas imagens podem ser vistas mais abaixo. Participantes do ato público sustentam que agentes do serviço reservado da corporação, afamado como P2, teriam jogado coquetéis molotov contra a tropa. O propósito, acusam, seria justificar repressão truculenta. Os artefatos feriram dois soldados, de acordo com a PM.
Os registros são eloquentes. Nota da polícia confirma o emprego de agentes se passando por manifestantes, mas nega com contundência que PM tivesse ferido PM, a fim de incriminar os ditos “baderneiros”.
A olho nu, a análise sobre a identidade de ao menos um atirador de bomba incendiária é inconclusiva para este repórter míope que aqui escreve. O primeiro vídeo ao pé do post aponta para coincidências. Um blogueiro do “New York Times” anotou diferenças.
Um vídeo que a PM divulgara ontem no Youtube saiu do ar depois de observadores encontrarem semelhanças entre o arremessador de explosivo e um aparente infiltrado que outra gravação flagrou.
Serviços secretos de informações não são instrumentos exclusivos de ditaduras. Eles têm serventia legítima ao Estado democrático de direito. Quase todas as grandes apreensões de drogas ilícitas no país resultam da coleta eficaz de dados por agentes de inteligência da Polícia Federal. Supõe-se e espera-se que a Agência Brasileira de Inteligência tenha investigado com rigor a possibilidade de conspirações terroristas contra o papa em sua visita ao Brasil, nem que seja para se certificar de que elas de fato constituem paranoia. E por aí vai.
Ao contrário do consagrado por tiranias, contudo, na democracia os serviços de espionagem militares e policiais precisam se submeter aos limites constitucionais. Não devem mirar antagonistas políticos, combatendo-os como os “inimigos internos” preconizados pela Doutrina de Segurança Nacional da ditadura instaurada em 1964.
A pancadaria nas cercanias do Palácio Guanabara lustrou a argumentação do governo Sérgio Cabral, que horas antes baixara decreto prevendo a quebra sem autorização judicial do sigilo de comunicações de alegados suspeitos de vandalismo. Juristas consideraram a iniciativa ilegal, e o governador recuou.
Ignoro o caráter da atuação dos policiais infiltrados. Mas sei que provocadores têm servido, de caso pensado ou não, à notória campanha em curso para demonizar as mobilizações. Ressurgiu o tom opositor da cobertura jornalística que vigorou nos primeiros atos do Movimento Passe Livre, em São Paulo. A despeito das ressalvas, equipara-se a massa combativa e pacífica à minoria de manifestantes ou “manifestantes” violentos.
Eu enfatizara na sexta-feira: “Como [os autores de quebra-quebra no Leblon] queimam o filme dos protestos e beneficiam o governo estadual com o verniz de vítima, talvez haja infiltrados de origem nebulosa. Cometeram crimes, têm de ser punidos escrupulosamente, nos termos da lei”.
O que isso tudo tem a ver com o tal Cabo Anselmo? Para quem chegou agora ao tobogã da história: o personagem é o marinheiro de segunda classe José Anselmo dos Santos. Os jornais do passado o celebrizaram como cabo, posto que ele jamais alcançou na Força. Nos meses que antecederam o golpe de Estado de 1964, o dito cujo presidia a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, agremiação que batalhava por uma plataforma democrática e reformista.
Há indícios fartos de que já então o falso cabo fosse informante da polícia política (Dops carioca), do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e da Central Intelligence Agency (a CIA norte-americana).
Só na década de 1970, quando o ex-marinheiro se travestia de guerrilheiro de esquerda, seus companheiros tiveram certeza de sua condição de infiltrado. No derradeiro serviço, Anselmo entregou seis correligionários para a repressão matar. Um deles era sua própria mulher, ao que tudo indica grávida.
Anselmo está vivo até hoje, quando se transforma em espectro nas manifestações: quem serão os Cabos Anselmo nas ruas do Rio?
Minha estupidez não é tamanha a ponto de supor que o desempenho dos infiltrados da PM seja igual ao de Anselmo. Muito menos que a conjuntura pré-abril de 1964 tenha parentesco com a atual. Mas há uma conformidade inegável: antes, supunha-se que Anselmo fosse um bravo militante político, quando não era. Até poucos dias atrás, mesmo os mais desvairados ativistas dos protestos passavam por legítimos manifestantes. Com os vídeos agora conhecidos, descobre-se _ou se confirma_ que alguns trabalham para a Polícia Militar.
Uma coisa é colher informações sobre vândalos.
Outra é atacar a tropa, fabricando pretextos para a repressão mais dura.
O que a PM pretende prendendo um repórter da Mídia Ninja? E surrando um fotógrafo?
Talvez as respostas apareçam na próxima passeata.
* Mário Magalhães nasceu no Rio em 1964. Formou-se em jornalismo na UFRJ. Trabalhou nos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Recebeu mais de 20 prêmios. É autor da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”.