FERREIRA GULLAR A lei do cão
Política

FERREIRA GULLAR A lei do cão



Por toda parte, nos subúrbios, é a mesma coisa: os bandidos mandam e desmandam

SE O SENHOR é jornalista, o melhor é parar a conversa por aqui, porque não quero me meter numa fria, entendeu? Sou casada, tenho marido e filho para criar. Se esse pessoal souber que falei alguma coisa, estou ferrada, porque lá onde eu moro, em Anchieta, perto do morro da Esperança, impera a lei do silêncio, tá sabendo? Falou, morreu. Por isso, o melhor é parar por aqui, a menos que o senhor se comprometa a não dizer meu nome nem dar nenhuma dica de quem sou eu. Promete?
Bem, se promete, posso lhe contar algumas coisas, mesmo porque sinto vontade de contar, tenho uma aflição aqui dentro de mim que não falo pra ninguém, muito menos pra gente de minha família, que mora perto e pode, sem querer, me entregar.
Pois olhe só, certa noite, estava vendo televisão com meu marido, o Dino, quando tocaram a campainha do portão e fui lá ver. Eram cinco garotos da favela, todos escurinhos, sendo que o mais velho não tinha 16 anos. Dois estavam armados de revólver. Aí o maior disse que estavam recolhendo dinheiro para comprar armas e que os moradores tinham de contribuir. Arma pra quê? Perguntei, e ele disse que era para defender o bairro.
Defender de quem? Falei eu, e me disse que era melhor eu dar o dinheiro e não ficar perguntando muito. Respondi que não tinha dinheiro, que meu marido estava desempregado há dois anos e que a gente vivia do pouco que eu ganhava fazendo faxina em casa de família. Ele disse para eu parar de conversa e ir logo buscar a grana. Fui para dentro, falei com Dino que, muito assustado, me aconselhou a dar o dinheiro que a gente tinha para fazer as compras de fim de semana. Dei o dinheiro e eles foram embora.
Duas semanas depois, voltaram querendo mais grana e aí meu marido veio com nosso filho nos braços, o Delildo, que nasceu deficiente. Explicou a eles que o último dinheiro a gente gastou comprando remédio para o menino, mas eles pouco ligaram, fizeram ameaças e se foram prometendo voltar.
Fiquei revoltada e quis chamar a polícia, mas o Dino disse que estava maluca, já que chamar a polícia era pedir para ser morta por aqueles pivetes. Tinha razão, tratei de me conformar, pedi dinheiro emprestado para minha patroa em Copacabana e dei a eles. Bom mesmo era mudar dali, ir morar em outro lugar. Mas que lugar? Por toda parte, nos subúrbios, é a mesma coisa, os traficantes e bandidos mandam e desmandam.
A rua onde eu moro não fica na favela, fica perto, mas os bandidos andam por ali, em grupo, a pé ou de moto, vigiando as pessoas e prestando atenção na polícia. Se um carro de polícia se aproxima, eles logo avisam os companheiros deles, pelo celular. Às vezes, altas horas da madrugada, a gente acorda com barulho de tiros. De manhã, já se sabe, ali por perto, tem dois ou três corpos de homens que eles mataram. Dizem que são bandidos de outras favelas, que tentam tomar deles os pontos-de-venda de drogas.
Mas às vezes não é isso. É punição, gente que é morta porque faz coisas que os traficantes proíbem. Uma dessas coisas é achacar os moradores da vizinhança do morro, assaltar pessoas ou casa de comércio. O traficante não quer encrenca com a polícia, quer vender sua droga e, para isso, precisa que a polícia não atrapalhe. Quem cria problema atrai a polícia e paga por isso, quase sempre com a vida.
Aqueles garotos que tomaram dinheiro da gente, lá em casa, sumiram. Depois me disseram que foram mortos. Os traficantes souberam que eles andaram achacando moradores e deram um fim neles.
Mas isso não me tranqüiliza, porque, se eles mandam matar os pivetes que achacam, também podem mandar matar qualquer um, por cisma ou por engano. Às vezes, debruçada na minha janela, fico olhando o amontoado de casas e barracos da favela e penso: "Em alguma daquelas casas está o homem que decide da vida e da morte de qualquer um de nós", e sinto um calafrio. Não sei até quando vou agüentar viver sob este terror.
E o pior é que, cada dia que passa, tenho mais motivos para viver assustada. Ultimamente, eles deram para vigiar os pontos de ônibus. São quase meninos, que chegam de motocicleta, param num beco escuro e ficam observando quem desce dos ônibus, se é morador do bairro ou gente de fora. Às vezes, estão na expectativa da chegada de alguém que querem eliminar.
Foi o que assisti, faz três dias, no momento em que descia do ônibus, no começo da noite. Um homem negro, alto, desembarcou na minha frente e, mal atravessou a rua, foi varado de balas por dois pivetes, que, pouco antes, fingiam conversar encostados num poste.



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