Política
Funai e meio ambiente Denis Lerrer Rosenfield
O GLOBO
A Funai publicou em 12/1, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa n.º 1, que versa sobre novas prerrogativas desse órgão nos processos de licenciamento ambiental de terras indígenas e de seu entorno. Mais precisamente, ela se autoinstitui como órgão licenciador para novos empreendimentos, avançando sobre as atribuições do Ibama.
O momento de edição dessa instrução normativa não deixa de ser revelador, pois ocorreu às vésperas de a Câmara dos Deputados reanalisar o novo Código Florestal. É como se ela já se contrapusesse à nova lei antecipadamente, desconsiderando assim todo o trabalho desenvolvido na Câmara e no Senado. Seria tentado a dizer que estamos diante de um abuso "legislativo", que se faz por mero ato administrativo, contrapondo-se a leis verdadeiramente ditas, elaboradas e aprovadas no Congresso Nacional.
Num primeiro momento, poder-se-ia ter a impressão de que a Funai estaria simplesmente agindo segundo suas competências, normatizando a questão ambiental dentro das terras indígenas. As aparências, porém, enganam, como se diz em linguagem popular. Nos artigos 1.º e 2.º, inciso I, fica manifesto que a atividade da Funai "no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos causadores de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas" diz respeito a "terras indígenas ou em seu entorno". O problema reside, então, no "entorno", termo vago e impreciso. No artigo 9.º, § 1.º, há outra precisão importante, pois é dito que terras indígenas incluem "áreas em revisão de limites ou com reivindicações previamente qualificadas quanto à tradicionalidade da ocupação".
Terras indígenas e "seu entorno" podem incluir, na verdade, qualquer extensão que um antropólogo e equipe considerarem como necessária à "reprodução física e cultural" das etnias em questão, o que significa tanto alguns poucos como dezenas de quilômetros. Não se pode esquecer de que qualquer demarcação de terras indígenas, para a Funai, diz respeito a milhares de hectares. Uma empresa envolvida num processo desses se torna, portanto, refém de qualquer tipo de arbitrariedade antropológico-administrativa, ficando à mercê de processos que se estenderiam certamente por anos. Em áreas próximas a terras indígenas passaria a Funai a agir como órgão licenciador, avançando sobre as funções do Ibama e dos órgãos ambientais estaduais.
Para além do problema do entorno, apresenta-se, ainda, outra questão da maior relevância: a de que áreas indígenas incluem terras em processo de identificação e demarcação, assim como de "revisão de limites". Ou seja, qualquer terra que estiver em processo preparatório e preliminar de estudos de identificação e demarcação deverá ser objeto de estudo ambiental controlado pela Funai, que visa a impedir que empreendimentos sejam feitos nessa área.
O absurdo chega às raias da inconstitucionalidade quando a instrução normativa estipula que terra indígena inclui "revisão de limites", eufemismo para burlar a determinação do STF quando do julgamento da Raposa-Serra do Sol, que veda a ampliação de terras indígenas. A Funai, por ato administrativo, desconsidera, com efeito, a decisão do STF!
Há um componente que poderíamos chamar de governo x governo nessa instrução normativa, como se o próprio PAC, por exemplo, devesse ser solapado. Se essa instrução for efetivamente aplicada, empreendimentos como o de Belo Monte se tornarão inviáveis. Todo projeto de construção de hidrelétricas, sobretudo na Região Amazônica, será literalmente paralisado, se não inviabilizado.
Ressalte-se que a instrução normativa vale para todo o País, e não apenas para a Região Amazônica. Considere-se que aproximadamente 13,5% do território nacional é constituído de terras indígenas, equivalentes a cerca de 110 milhões de hectares; considere-se, igualmente, que a Funai pensa aumentar significativamente esse número com novos processos de identificação e demarcação e ampliações. O resultado desse processo só poderá ser um prejuízo incalculável para novos empreendimentos, tanto nos setores da agropecuária e do agronegócio quanto na construção civil, em estradas, hidrelétricas e mineração. Note-se que não apenas empresas privadas serão prejudicadas, como também grandes empreendimentos estatais.
Segundo o artigo 4.º, § 2.º, a Funai poderá "receber petições e solicitações de acompanhamento de empreendimentos ou atividades potencial e efetivamente causadoras de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas assinadas por: a) Comunidades indígenas; b) Organizações indígenas; c) Organizações constituídas legalmente no Brasil cujo objetivo social tenha pertinência com a defesa dos povos indígenas ou a proteção do meio ambiente; d) Órgãos licenciadores; e) Ministério Público Federal; f) Demais interessados". Atente-se para os itens b e c, que inevitavelmente estabelecerão como partes o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e ONGs, tanto nacionais quanto internacionais, sediadas no País. Abre-se um enorme espaço de atuação administrativa e política para esses ditos movimentos sociais e ONGs. A politização ideológica fecha, então, esse quadro.
A participação das comunidades indígenas potencialmente afetadas se fará durante toda a tramitação do processo, passando elas a opinar e mesmo decidir sobre a criação de um novo empreendimento público ou privado, não apenas em seu próprio território, como lhe é constitucionalmente assegurado, mas também em seu "entorno", o que é uma arbitrariedade.
Nesse contexto, a última palavra em todo empreendimento terminará nas mãos de comunidades e entidades indígenas, por intermédio de suas organizações, movimentos sociais e ONGs nacionais e internacionais. O mais sensato a ser feito pelo Ministério da Justiça é a pura e simples revogação dessa instrução normativa, sob pena de acirramento de conflitos e paralisia econômica.
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