Nos últimos dias, à medida que as pesquisas indicaram a tendência de consolidação da dianteira da candidatura de Barak Obama à Casa Branca, a campanha do seu adversário John McCain trocou a pregação em torno de sua plataforma de governo por insinuações, beirando o racismo, sobre a pessoa do opositor. "Quem é o verdadeiro Barack Obama?", o republicano pergunta retoricamente nos seus comícios, ao que a platéia reage com insultos e acusações. E a sua candidata a vice, Sarah Palin, emenda: "Ele não é um homem que vê a América do modo como vocês e eu vemos a América." Esse tipo de sordidez não é incomum nas disputas eleitorais nos Estados Unidos - e é muito mais freqüente do que no Brasil.
Aqui, em geral, a intimidade dos competidores é preservada, mesmo quando eles lançam suspeitas, por exemplo, sobre a idoneidade de cada qual. Ali, no limite, as equipes dos candidatos devassam a vida pessoal dos rivais em busca de fatos que manchem a sua imagem. O eterno argumento, de um cinismo a toda prova, é o de que o eleitor tem o direito de saber "as verdades" a respeito de quem lhes pede o voto. Pois, quase com as mesmas palavras e com a mesmíssima desfaçatez, foi o que o eleitor paulistano ouviu domingo nas inserções de propaganda da candidata petista Marta Suplicy ao segundo turno. "Para decidir certo é preciso conhecer bem", dizia o locutor, logo depois de perguntar, enquanto a tela mostrava uma foto de Gilberto Kassab: "É casado? Tem filhos?"
Nem ao mais desavisado cidadão ocorrerá supor o disparate de que ser casado e ter filhos, ou não, pode fazer diferença para o desempenho de um administrador público. Mas é claro que Marta é a primeira a saber disso. O ponto da perfídia nascida do seu desespero é outro: plantar no eleitorado a idéia de que, por alguma estranha razão, o prefeito, que a superou no turno inicial, saiu 17 pontos à sua frente na primeira pesquisa em seguida e desfruta de uma aprovação com que ela apenas pode sonhar, tem um não-sei-que a separá-lo do comum das pessoas - e essa suposta circunstância é um problema para São Paulo. É como se Marta dissesse, à maneira de Sarah Palin, mas veladamente: "Ele não é um homem que vê São Paulo do modo como vocês e eu vemos São Paulo."
Ainda no domingo, pouco antes de seu debate na televisão com Kassab, perguntada por um repórter se a propaganda não era contraditória com a sua biografia, Marta se fez de desentendida. "O que você está querendo insinuar?", retrucou. A contradição, no entanto, salta aos olhos - o que só agrava a torpeza. A sexóloga Marta Teresa Smith de Vasconcelos Suplicy, antes e depois de entrar para a política, se tornou conhecida como defensora aguerrida da tolerância nas relações pessoais e em sociedade, bem como da aceitação das diferenças. E, com carradas de razão, reagia vigorosamente sempre que se tentava usar contra ela, na política, a sua separação do senador Eduardo Suplicy e, afinal, o seu casamento com o franco-argentino Luís Favre. É de imaginar o que ela faria se, por absurdo, um comercial de Kassab aludisse a isso.
No calor da hora, políticos dizem inconveniências a que, muitas vezes, se dá mais importância do que merecem. Mas as perguntas maliciosas sobre a vida pessoal do adversário, de caso pensado, são imperdoáveis. Pode ser que, além de desqualificar o oponente, a intenção imediata da baixeza tenha sido a de tirá-lo do sério no debate. Se disso também se tratou, foi um fracasso. Embora menos tarimbado do que a petista em situações do gênero, Kassab não apenas "tirou de letra" as tentativas de Marta de condená-lo por ter andado em más companhias políticas - "Eu ando com o Lula e você anda com Maluf e Pitta", atacou -, como ainda teve frieza para lhe dar o troco. Lembrou que, na Secretaria de Planejamento de Pitta, um dos seus principais assessores era Jorge Wilheim, atual coordenador do programa de governo da candidata. E que Maluf, cujo partido, o PP, está no governo Lula, a apoiou no segundo turno de 2004. Aliás, poderia encher o debate inteiro falando sobre as "más companhias" do presidente Lula. Quanto à vida particular da candidata, não se julgou no direito de comentá-la. Guerras de caráter, em suma, mostram o caráter de quem as faz.
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