O poder da liberdade
Debate da Aner na Câmara dos Deputados reúne ministros do
STF, parlamentares e jornalistas em torno de uma questão vital:
a liberdade de expressão no Brasil está garantida?
Diego Escosteguy
Ed Ferreira/AE |
"É requisito da democracia a existência de uma imprensa livre e responsável." |
Os jornalistas brasileiros trabalharam nas últimas quatro décadas sob a espada da Lei de Imprensa. Editada em 1967 pelos militares que governavam o país, a lei serviu como instrumento para intimidar repórteres e empresas de comunicação. No dia 30 de abril, os ministros do Supremo Tribunal Federal finalmente livraram o Brasil desse monturo autoritário. Na semana passada, ministros do Supremo, parlamentares e jornalistas reuniram-se por iniciativa da Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) na Câmara dos Deputados para debater os rumos da imprensa após a queda da lei. A pergunta que norteou as discussões foi a seguinte: o país precisa de outra lei de imprensa? E, caso precise, o que ela deveria contemplar? Não houve consenso sobre o assunto, mas o debate serviu para sedimentar uma incontornável certeza: com ou sem lei, a imprensa deve ser absolutamente livre – e protegida de qualquer investida tutelar do estado que possa pôr em risco essa liberdade, imprescindível para a democracia.
O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, argumentou que, mesmo que não se chegue a uma lei para proteger o cidadão de eventuais erros cometidos pela imprensa, as empresas de comunicação e os jornalistas devem se autorregular. "É requisito essencial de qualquer estado democrático de direito a existência de uma imprensa livre e independente, mas, acima de tudo, de uma imprensa responsável", ponderou o ministro. "É tarefa dos próprios órgãos de imprensa proteger o indivíduo contra o abuso dos veículos de comunicação." Mendes ressaltou que não estava sustentando veladamente nenhuma espécie de censura: "Não se deve confundir a luta pela regulação da atividade jornalística com a tentativa autoritária de restringir o direito de manifestação do pensamento".
Por outro lado, ouviram-se também bons argumentos contra a existência de qualquer lei ou mecanismo de regulação. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto, fez uma defesa apaixonada da centralidade da imprensa no regime democrático. Para ele, não há necessidade de criar uma lei específica. Disse o ministro: "A imprensa é caixa de ressonância da sociedade, e a própria sociedade controla a imprensa, porque é assim que a democracia se fortalece e, junto com ela, a liberdade de imprensa". Ayres Britto ressaltou que a Constituição de 1988 é clara quanto ao direito à liberdade de expressão. "Nada é mais essencialmente entranhado com a dignidade da pessoa humana do que a liberdade de expressão", disse. "Há direitos absolutos na Constituição, como o direito a não ser torturado. O mesmo se dá com a liberdade de imprensa, que não pode ter sua atividade cerceada de nenhuma forma."
Cristina Gallo / BG Press |
"Quem quer uma nova lei são as autoridades, mas a Constituição proíbe isso expressamente." |
Ayres Britto e o deputado carioca Miro Teixeira, autor da ação que veio a derrubar a lei de imprensa no STF, identificaram, da parte dos que defendem um novo mecanismo de controle, a existência de um sentimento difuso de anseio pela tutela do estado – um tipo de dependência onipresente no país, em razão de nossa tradição autoritária. Disse Miro Teixeira: "As autoridades é que querem lei. O fato é que há uma cultura, que remonta aos tempos do Império, de que não se pode falar mal da autoridade, do poder político. Não podemos nos nortear por esse tipo de princípio, que é incompatível com o ambiente democrático". Para ilustrar essa mentalidade, o presidente do TSE recorreu ao escritor checo Milan Kundera, citando trechos do livro A Insustentável Leveza do Ser: "Acabamos nos habituando com o peso da vida e não reclamamos dela, mas das pernas arqueadas. O mesmo pode estar acontecendo com a imprensa, que agora está finalmente livre".
No momento em que o país está prestes a completar 25 anos de normalidade democrática, pode parecer irrelevante debater algo como a liberdade de imprensa, aparentemente tão natural como respirar. Esse conceito está definitivamente arraigado. Mas a liberdade é mais do que isso – é uma prática, e ela pode ser atropelada, mesmo sem o recurso das leis de exceção. Na semana passada, a Petrobras deu uma demonstração disso quando, durante alguns dias, manteve em seu blog uma política de relação com a imprensa que só se viu no passado em situações de guerra em que um dos lados falava com repórteres de países inimigos. A empresa petrolífera, que é controlada pelo governo mas pertence ao povo brasileiro e a seus demais acionistas, decidiu intimidar a imprensa por meio de um mecanismo ardiloso. Todas as perguntas dirigidas à Petrobras por repórteres foram publicadas no blog junto com as respostas da empresa – antes mesmo que o jornal ou a revista as tivessem aproveitado em suas reportagens. O expediente é legal, mas atropela de forma tão brutal a prática jornalística que foi abandonado pela Petrobras antes que a semana terminasse. Como bem lembrou o ministro Ayres Britto, a liberdade de imprensa é uma cláusula pétrea da Constituição brasileira, mas é preciso que a prática e as normas nunca percam de vista o desejo expresso na lei maior do país.