J.R. Guzzo Esperar para ver
Política

J.R. Guzzo Esperar para ver



"Não dá realmente para dizer quem é quem. Separar
um ‘clero’ do outro deixou de ser um esforço difícil.
Tornou-se apenas inútil"

Para uma coisa, pelo menos, pode estar servindo o choque de ladroagem, legalizada ou não, vivido hoje pelo Congresso Nacional – deputados e senadores tornam-se a cada dia mais parecidos consigo mesmos, e isso dispensa o público de ficar quebrando a cabeça para descobrir as diferenças entre uns e outros. Houve um tempo em que parecia valer uma regra razoavelmente segura: os menores eram os piores. Os parlamentares do "baixo clero", como são conhecidos os que não influem nas comissões, não participam de programas políticos na televisão e não aparecem no plenário, ficavam, em geral, com a responsabilidade pelo grosso dos delitos praticados no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. É natural. Trata-se, na maioria dos casos, de uma coleção de escroques, farsantes e parasitas como poucas vezes se reuniu debaixo de um mesmo teto – e que está no Congresso em busca de negócios ou, simplesmente, para proteger-se do Código Penal. Seu símbolo, para quem ainda se lembra, foram os "anões do Orçamento". Bons tempos, aqueles. Hoje o "baixo clero" continua tão baixo quanto sempre foi. Mas o que se imaginava ser o "médio" ou o "alto" clero, toda essa gente que tem "prestígio político", ocupa cargos de liderança e é convidada para discutir a situação nacional em entrevistas e mesas-redondas, desceu para o nível dos anões. Eles não fazem exatamente as mesmas coisas. Mas fazem muitas delas – o bastante para ficarem todos tão parecidos entre si, mas tão parecidos, que não dá realmente para dizer quem é quem. Separar um "clero" do outro deixou de ser um esforço difícil. Tornou-se apenas inútil.

Nada, no momento, demonstra tão bem essa realidade quanto as revelações, feitas praticamente todos os dias e envolvendo um número cada vez maior de congressistas, sobre o uso pessoal das passagens aéreas que recebem do Erário e que deveriam ser empregadas em viagens de trabalho – se não fosse para isso, por qual outra razão o público teria de pagar por elas? Os 25 milhões de brasileiros que nesta semana estarão terminando de entregar sua declaração de renda à Receita Federal vão sentir o prazer de ter pago do seu bolso as viagens de recreio das mulheres, filhas, mães, primas, namoradas ou sogras de parlamentares, além deles mesmos e de quem mais eles quiseram, a Nova York, Miami, Paris, Londres, Madri, Buenos Aires e outros destinos clássicos do turismo internacional. Terão, também, a tranquilidade de saber que o seu dinheiro pagou as férias de deputados e senadores de todos os partidos, de todos os credos e de todas as ideologias, sem nenhuma discriminação ou favoritismo. Estão na lista, por exemplo, Ricardo Berzoini, presidente do PT, e Rodrigo Maia, presidente do partido oposto, o DEM. Estão José Genoíno e Antonio Carlos Magalhães Neto, Ciro Gomes e Nelson Marquezelli. Estão o próprio presidente da Câmara, Michel Temer, e até Fernando Gabeira, que nunca foi de fazer essas coisas.

O público teve a oportunidade, no decorrer da narrativa, de ouvir dos envolvidos as mais espantosas explicações para sua conduta. O deputado Temer, falando como se estivesse na presidência da Câmara dos Lordes, garantiu que tudo não passava de um ou outro caso isolado – no exato momento em que dezenas de casos isolados, inclusive o dele próprio, desabavam no noticiário. O deputado Inocêncio Oliveira, que levou mulher, filhas e neta para passear nos Estados Unidos e na Europa, disse que agiu muito bem, porque "a família é sagrada". O deputado João Paulo Cunha assegurou que passagens e outros privilégios são um exemplo admirável de justiça, pois beneficiam os "deputados pobres" – sem essa ajuda, como eles poderiam exercer suas funções? (É curioso observar como a "linha da pobreza" do deputado Cunha se move para cima. Quando era um líder operário em Osasco, não lhe passaria pela cabeça achar que alguém poderia ser pobre e, ao mesmo tempo, ganhar 16 500 reais por mês – o salário atual de um deputado federal, ao qual se soma o caminhão de vantagens destinado a reduzir sua pobreza.) Tudo bem, mas Cunha foi pego usando passagens da Câmara para levar a família a Bariloche – e o que teria isso a ver com o exercício das suas funções de deputado?

Na semana passada, depois de passar os últimos tempos dizendo que o noticiário sobre essa aberração toda era uma campanha da imprensa para "fechar o Congresso", a Câmara decidiu suspender as passagens para os familiares dos deputados. Menos mau, mas não parece um ato de contrição – nada que mude, realmente, a maneira como se pensa e se age por ali. É esperar para ver.




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