Política
JOÃO UBALDO - Vergonha da mesóclise
O GLOBO
Não pretendia voltar a escrever sobre como a língua vai mudando, por não querer ser chamado de velho caturra, mas é difícil segurar e aí não me contenho.
Esta semana (ou, segundo a atual usança, "nesta semana"), por exemplo, cheguei à conclusão de que estamos caminhando para a adoção de uma nova regra em relação às orações com o sujeito na terceira pessoa, tanto do singular quanto do plural. Assisti a muitos noticiários de televisão nos últimos dias, ouvi muitas entrevistas com todo tipo de gente e a conclusão dispensa maiores pesquisas. Dentro em breve vai ser errado dizer, por exemplo, "o avião teve uma pane elétrica". Imagino que, a continuar a tendência, as crianças nascidas hoje não compreenderão uma frase assim, porque jamais a ouvirão. Ouvirão "o avião, ele teve uma pane elétrica". E lerão numa gramática da norma culta que, na terceira pessoa, o sujeito precisa ser confirmado pelo pronome para o enunciado ficar claro.
Para nós, velhos caturras, isso nos aproxima de nossos parentes de Neanderthal, mas que é que se vai fazer, só se fala assim, é impressionante.
Nesse caso, ao contrário de outros que agora me ocorrem, não vejo influência da cultura que nos domina, tão avassaladoramente que quem não souber um pouco de inglês não pronuncia talvez os nomes da maioria das marcas, ou seja, a cultura americana. Hoje não se diz, como ouvi muito na infância e adolescência, que a língua que falamos não serve para cinema, ou a voz de Fulano se presta melhor para cantar em inglês.
Mas a macaquice deslumbrada continua a mesma, tudo em inglês é mais chique.
Contudo, o sujeito duplo, ou "confirmado", não veio do inglês, a não ser que a moda tenha chegado depois de algum filme de Tarzan com a macaca Chita.
Talvez seja uma espécie de muleta verbal, para dar tempo de se achar com clareza o que se vai dizer, embora eu considere pigarrear muito mais decente do que dar a impressão de que se aprendeu a falar faz dez minutos.
Com o fascínio pelos americanos, isso sim, estabeleceu-se o "você", no lugar do nosso bem mais respeitável "se" de que americano não dispõe no dia a dia, a não ser que queira soar afetado ou fazer alguma brincadeira e use "one". Agora não se faz mais nada, é você quem faz. Por exemplo, a afirmação "deve se checar" (tudo bem, "devese" checar; dá no mesmo, mas tudo bem, cartas indignadas para o editor, por misericórdia), é substituída por "você deve checar". De novo, só se ouve falar assim e de novo temo que se transforme em regra, até porque você escuta muito isso dos próprios professores e você sabe que, quando você aprende algo de um professor na infância, você nunca esquece e aí você usa na vida o que você aprendeu na escola.
Soa como papo de um chefe comanche com John Wayne, mas imagino que também é inexorável.
Na mesma linha, embora costume poupar os mais velhos, enquanto ataca impiedosamente a flor de nossa juventude, está a extinção, por enquanto pouco notada, mas insidiosa, da flexão verbal do futuro, não só do indicativo, mas de outros modos. Não se diz mais, "eu irei a São Paulo domingo" ou "eu vou a São Paulo domingo", mas "eu vou ir a São Paulo domingo". Quando me dei conta desse fenômeno, achei que, além de caturra, estava ficando surdo para combinar. Em algumas flexões isso soa penoso, mas o pessoal persiste e já ouvi, como muitos de vocês devem ter ouvido, "ela ia ir". Soa um pouco como um cavalo relinchando e acredito que não será por acaso.
Além do "cujo", já pranteado aqui há duas ou três semanas, também merece uma saudação nostálgica o bom e velho "prejudicar", que, depois de séculos de serviço, foi substituído por "penalizar", como em "a nova lei penaliza a classe média". E, que é mais cruel, esse verbo hoje sofre de uma crise de identidade e seu antigo sinônimo "condoer" parece que assumirá o monopólio desse significado. Daqui a alguns anos, quem disser que ficou penalizado com a morte de alguém será tido como um parente não contemplado no testamento. E "penalizar" será, talvez, companheiro de outros, cujos destinos foram rudemente afetados, o primeiro dos quais é "malicioso". A palavra "malicious" significa "maldoso" em inglês, mas "malicioso" não quer dizer "maldoso".
Não queria, aliás, porque agora já há programas maliciosos, atos maliciosos e assim por diante, tudo conotando malvadeza e não malícia. Caminho análogo ao de "salvar", que agora significa "guardar" e "gravar", ou "corporativo", que agora significa "empresarial", assim como as sociedades anônimas são corporações. E falta ainda lembrar o "suportar", em avisos como "este sistema não suporta senhas alfanuméricas", ou seja, o sistema fica possesso de raiva, quando vê uma detestável senha alfanumérica.
Ah, dirá talvez a maioria de vocês, são de fato caturrices, rabugices — como já as qualifiquei aqui mesmo. Até admito, mas existe o direito de sentir saudades de uma língua que dispõe (ou dispunha) de recursos expressivos, elegantes e precisos e que os vai perdendo tão esbanjadamente, a ponto de a gente ter vergonha deles. Da mesóclise, coitada, nem se fala. Seu raríssimo emprego é obrigatoriamente seguido de uma explicação ou piada, porque, se for a sério, é considerado pedante ou ridículo, talvez porque quem pensa assim crê que usá-la envolve dificuldades insuperáveis. Da mesma forma, certas combinações, como "mo", na frase "depois que eu vi o livro, ela mo deu". Só se diz "ela me deu", o que pode até gerar interpretações marotas em relação à senhora referida pelo "ela". Mas vamos ser otimistas e torcer para que a situação seja apenas passageira e que nossa língua volte a ser tratada com o afeto respeitoso que outrora despertava. A esperança, ela é a última que morre.
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