Com essa frase, o vice-presidente José Alencar entrou
numa cirurgia de proporções épicas, que combinou a
fantástica habilidade da equipe médica com técnicas
inovadoras contra cânceres agressivos
Adriana Dias Lopes
VEJA TAMBÉM
|
Nos últimos doze anos, o vice-presidente da República José Alencar passou por nove cirurgias. Ele já perdeu o rim direito, a próstata e dois terços do estômago. Nenhuma dessas intervenções, contudo, pode ser comparada à última, realizada no domingo 25, em São Paulo – a quinta tentativa de extirpar um sarcoma detectado pela primeira vez em 2006. Ela não foi a mais delicada e perigosa apenas por causa dos 77 anos do paciente, tampouco pelas características do câncer, um tumor recidivo, violento e resistente aos tratamentos convencionais. Foi a mais complexa porque envolveu uma sequência de procedimentos raramente adotados numa única cirurgia. Os médicos não conheciam a real extensão do câncer. Era uma incógnita também como Alencar resistiria aos primeiros movimentos da equipe – o que definiria o curso das condutas seguintes. "A única grande certeza era a de que a operação seria marcada por uma série de momentos decisivos", diz o oncologista Paulo Hoff. E de fato foi o que aconteceu. Em dezessete horas e meia, os médicos retiraram quinze nódulos malignos da região abdominal de Alencar e submeteram o vice-presidente, ainda durante a cirurgia, a um tipo inovador de quimioterapia preventiva.
O domingo foi escolhido para a operação do vice-presidente por se tratar de um dia sem muita movimentação no Hospital Sírio-Libanês. "Queríamos espantar os curiosos", afirma Enis Donizetti Silva, coordenador do Serviço de Anestesia do hospital. "Tínhamos em mãos um paciente ilustre e uma cirurgia complicada pela frente." Das doze salas do centro cirúrgico, apenas três foram usadas naquele dia, incluindo a do vice-presidente. Alencar chegou à mesa de operação pouco antes das 7 da manhã. Sob efeito do tranquilizante Dormonid, ele manteve o bom humor e o otimismo com os quais vem enfrentando a doença. "Quanta moça bonita", balbuciou para as enfermeiras ao redor da maca. Em seguida, virou-se para os médicos e disse: "Vamos agora ao jogo da vida". Logo depois, Alencar dormiu. Às 9 horas, com equipe e instrumentos a postos, teve início a operação. Ao todo, cinquenta pessoas foram mobilizadas em pontos estratégicos do hospital – dez na sala de cirurgia e o restante no banco de sangue, na farmácia e no laboratório de análises patológicas, entre outros departamentos. Dos que participaram diretamente do procedimento, nenhum arredou pé da sala por mais do que alguns minutos. Nas dezessete horas e meia, o cirurgião Ademar Lopes saiu apenas duas vezes do centro cirúrgico.
Manoel Marques |
TRABALHO HEROICO O cirurgião Lopes (no centro), o cardiologista Kalil, o oncologista Hoff e o anestesista Silva (da esq. para a dir.) |
Na primeira etapa da operação, foi preciso descolar os canais dos intestinos, grudados no processo de cicatrização das cirurgias anteriores. Lopes só alcançaria o tumor principal, de 12 centímetros de diâmetro, localizado na região posterior do abdômen, se o caminho estivesse livre das aderências. "Isso aqui não está bom", disse ele por duas vezes, durante esse processo. A quantidade de aderências era muito maior do que se previa. Durante o descolamento dos intestinos, os médicos aproveitaram para retirar os dois primeiros nódulos (veja quadro abaixo). Até esse momento, quatro horas haviam se passado desde o início da operação.
A tensão da equipe médica diminuiu um pouco por volta da 1 hora da tarde. Lopes finalmente havia chegado à região do tumor principal e constatara que a doença não havia comprometido o rim remanescente, ainda que tivesse contaminado outros tantos tecidos, como o do ureter, o canal entre o rim e a bexiga. O cirurgião quebrou o silêncio e pediu aos médicos pessoais de Alencar, o oncologista Hoff e o cardiologista Roberto Kalil, para que se aproximassem. "Vai dar certo", disse ele. Se o tumor houvesse lesionado o rim, seria necessário fazer um autotransplante. Ou seja, retirar o órgão, limpá-lo e recolocá-lo – o que tornaria tudo ainda mais arriscado. Aliviado, o cirurgião saiu pela primeira vez da sala. Em dez minutos, ele beliscou algumas bolachas doces e tomou duas caixinhas de suco – laranja e pêssego. Extremamente discreto, Lopes é um daqueles cirurgiões que só falam o necessário durante as operações que comandam. Enquanto trabalha, não olha o relógio, não admite música ambiente e prefere que a equipe atenda o celular fora da sala. Foi o que o cardiologista Roberto Kalil fez quando o presidente Lula, o governador José Serra e o secretário estadual de Saúde de São Paulo, Luiz Barradas Barata, ligaram em busca de notícias.
Na etapa posterior, os médicos se dedicaram à extirpação do tumor principal e dos tecidos ao redor dele. O procedimento foi difícil por se tratar de uma região repleta de vasos grossos, o que aumenta a probabilidade de hemorragia, uma emergência pela qual Alencar não poderia passar. Ele vinha de uma anemia severa e seu organismo já estava propenso a hemorragias por causa dos tratamentos anteriores contra o câncer. Por precaução, no dia anterior, havia recebido 1 litro de sangue – uma medida pouco usual hoje em dia. Apesar de todo o perigo, essa etapa foi superada com pleno sucesso. O terceiro momento crítico da operação ocorreu por volta das 7 horas da noite. Era chegado o momento de optar ou não pela quimioterapia hipertérmica. É um tratamento de precaução que consiste em injetar no local dos tumores doses de quimioterápicos a 40 graus. O objetivo é matar eventuais células cancerosas que tenham escapado à remoção cirúrgica. O calor facilita a absorção do remédio pelo organismo e, pelo fato de o medicamento ser injetado diretamente no foco da doença, é possível administrar três vezes mais quimioterápicos que nos métodos convencionais.
A quimioterapia hipertérmica é uma técnica relativamente nova. Chegou ao Brasil no início dos anos 2000 e, embora bastante eficaz, oferece riscos severos ao paciente. O principal deles: lesões internas equivalentes a queimaduras de segundo grau. No fim do ano passado, quando Alencar soube que teria de ser submetido a essa cirurgia, os médicos aventaram com ele a possibilidade de recorrer à quimioterapia hipertérmica. Mas nada poderia ser decidido fora da mesa de operação. O vice-presidente só seria submetido ao tratamento se, durante a operação, suas funções vitais se mantivessem absolutamente normais. Foi o que aconteceu. Como o alvo dos quimioterápicos era a porção posterior abdominal, durante uma hora e meia os médicos balançaram a barriga de Alencar para que o remédio se espalhasse por todo o abdômen. Com o fim da quimioterapia, por volta das 8 e meia, o cirurgião Lopes saiu pela segunda vez da sala. Cedeu o posto de comando a quatro cirurgiões urológicos. Em uma hora e meia, eles reconstruíram com tecido retirado do intestino delgado a porção do ureter consumida por um dos tumores.
Às 10 da noite, deu-se início à contagem regressiva para o fim da longa jornada, quando os órgãos passaram a ser fechados. Às 2 e meia da manhã, Alencar foi para a sala de recuperação. "Acabou o primeiro tempo do jogo", comemorou o anestesista Silva. "E estamos ganhando de 1 a 0." No fim da sexta-feira passada, Alencar já respirava sem a ajuda de aparelhos, estava com suas funções cardíacas em perfeita ordem e as renais praticamente normalizadas. "Se tudo se mantiver como está, o vice-presidente deverá deixar o hospital nas primeiras semanas de fevereiro", diz o cardiologista Roberto Kalil. O jogo da vida continua, graças à resistência de Alencar, aos avanços técnicos da cirurgia oncológica e à extrema habilidade da equipe heroica que permaneceu durante dezessete horas e meia debruçada sobre um dos piores e mais traiçoeiros inimigos do homem.
Foto Sérgio Lima/Folha Imagem |