A Constituição de
escolhas erradas
"Em vez de uma nova Constituição, bastaria emendar
a do regime militar, dela extirpando os poderes de arbítrio"
Durante os trabalhos da Assembléia Constituinte (1987-1988), recebi dois de seus ilustres membros no Ministério da Fazenda. Queriam minha opinião sobre sua proposta de incluir na Constituição uma norma para conceder anistia das dívidas bancárias dos agricultores. Eu lhes disse que julgava a idéia imprópria para um texto constitucional. Custaria muito ao contribuinte e deixaria um péssimo exemplo, que estimularia demandas semelhantes no futuro. De nada adiantou. Dias depois, a direita e a esquerda se uniram para aprovar a medida.
Participei de muitas das negociações da Constituinte. Derrotas e frustrações como essa eram a rotina. Idéias estapafúrdias vingavam, caso do artigo que fixou a taxa de juros real em 12% ao ano. Os representantes do Norte, Nordeste e Centro-Oeste defendiam a elevação substancial das transferências da União para seus estados. Acreditavam que a reforma seria a redenção. Preparei estudo mostrando o erro do raciocínio.
Resumi o estudo em artigo para VEJA (30/9/1987). Os parlamentares não gostaram. Em nota oficial, pediram minha demissão. A justificativa era emocional: "Nordestino, da Paraíba, nascido em terra sofrida, o articulista, esquecido de suas origens, investe contra as populações mais pobres, que estão lutando, apenas, para alcançar a merecida e esperada igualdade nacional de tratamento". Como era previsível, a redenção não aconteceu. Não é assim que se enfrenta a questão das desigualdades regionais.
Uma comissão de constituintes buscou formular uma proposta para transferir responsabilidades aos estados e municípios e assim compensar as perdas de recursos da União. Constatou-se que não havia o que fazer. O grosso dos gastos se concentrava em pessoal, aposentadorias, dívida pública, Forças Armadas e outros. Não dava para transferi-los para outras esferas de governo.
A Constituinte se transformou em abrigo para privilégios e benefícios em favor de estados, municípios, funcionários públicos, aposentados, devedores e quejandos. Poucos faziam conta dos custos. Grupos de pressão conseguiam criar regras de seu exclusivo interesse. Na contramão da história, aumentou-se a intervenção na economia e se criaram novos monopólios estatais. As vozes da sensatez no Congresso eram caladas pelo anticapitalismo e pelas comemorações nas vitórias das idéias do atraso.
Situação oposta ocorreu com os líderes americanos que elaboraram a primeira Constituição escrita da história (1787). Eles se guiaram por princípios, particularmente os relativos à liberdade. Embora tenham cometido o erro de não extinguir a escravidão, produziram uma obra política colossal, de apenas sete artigos. As novas instituições contribuiriam para transformar o país em potência.
Nossos constituintes se inspiraram em modelos exaustos, em vez de mirar o futuro. Basearam-se em visões idílicas de como resolver seculares problemas sociais. Certas regras beiram o ridículo, como as que estabelecem onde o juiz deve morar e os tipos de polícia. A racionalidade econômica foi deixada de lado. Resultado: uma obra velha de mais de 300 artigos, um estado obeso e uma carga tributária excessiva.
As escolhas erradas custam caro até hoje, mas cresceu o apoio a mudanças. Já são 62 emendas constitucionais, embora sua aprovação tenha consumido energias que poderiam ser empregadas de forma mais produtiva. Em seus mais de 220 anos, a Constituição americana recebeu apenas 27 emendas.
Em vez de uma nova Constituição, bastaria emendar a do regime militar, dela extirpando os poderes de arbítrio. Nenhum país bem-sucedido precisou de um texto constitucional como o nosso para garantir a democracia e as conquistas da cidadania. Deve-se lembrar que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948).
É necessário reconhecer que não dava para evitar o desastre de 1988. A maioria professava a ingênua visão de que a democracia e a Constituição nos trariam felicidade sem muito esforço, sob comando do estado. Não havia liderança política disponível para convencer do contrário. Foi um grande erro. Resta-nos acelerar as reformas e minimizar seus efeitos.