Naiara Magalhães
Fotos Roberto Setton e Arquivo Pessoal | QUEBRA DE CONFIANÇA |
Nos últimos anos, o cirurgião Áureo Ludovico de Paula vem sendo enaltecido como líder de uma das mais revolucionárias e promissoras frentes de combate ao diabetes tipo 2, o tratamento cirúrgico da doença. Ele é o criador de uma técnica que, ao alterar a anatomia do intestino delgado, consegue regular a ação dos hormônios envolvidos no controle das taxas de açúcar no sangue. Na semana passada, contudo, De Paula foi questionado a respeito de uma qualidade fundamental: a idoneidade. Em representação entregue ao Ministério Público Federal em Goiás, o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Junior, qualifica como ilegal a cirurgia do diabetes, pela qual já passaram o apresentador Fausto Silva e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Chamada cientificamente de interposição do íleo, ela é realizada rotineiramente por De Paula no Hospital de Especialidades, em Goiânia, e no Albert Einstein, em São Paulo. Além da representação do CNS, o Conselho Regional de Medicina do estado de Goiás decidiu convocar De Paula para assinar um termo de ajustamento de conduta, segundo o qual ele se comprometeria a suspender temporariamente a cirurgia de interposição do íleo. "Se ele não assinar o termo ou descumpri-lo, o Ministério Público entrará com uma ação civil pública na Justiça Federal pedindo que ele seja impedindo de realizar esse tipo de cirurgia", diz a procuradora Léa Batista de Oliveira, responsável pelo caso.
Fotos Roberto Setton e Arquivo Pessoal |
PACIENTES ILUSTRES |
A representação do CNS aponta duas infrações cometidas por De Paula. A operação é experimental segundo o Conselho Federal de Medicina, mas não está registrada em nenhum protocolo de pesquisa nem foi submetida, antes de ser posta em prática, aos comitês de ética dos hospitais onde é realizada. Além disso, De Paula cobra para operar, o que é proibido pelo CNS e pelo Código de Ética Médica. O documento foi anexado à investigação que o Ministério Público realiza desde julho para apurar se o médico cometeu os crimes de exercício ilegal da medicina e lesão corporal dolosa contra a advogada Daliana Camargo, de 31 anos. Em 2005, com 95 quilos, Daliana, de 1,58 metro, procurou De Paula para fazer uma cirurgia de redução de estômago. Depois da operação, no entanto, sua vida virou um inferno. As complicações culminaram com uma fístula no estômago, que não cicatriza. Desde janeiro, Daliana só se alimenta por sonda e carrega um dreno na barriga. Ela não pode nem beber água, sob o risco de sofrer infecção e dores terríveis. Teve de abandonar o trabalho, os passeios com os amigos e o voluntariado na Associação Saúde & Alegria, que se dedica a suavizar o sofrimento de doentes hospitalizados. Com o comportamento infantilizado, provavelmente pela carência de nutrientes, sua diversão hoje são os desenhos animados na televisão e a massinha de modelar. Os momentos de tranquilidade, porém, são raros. Na maior parte do tempo, Daliana mostra-se deprimida e irritadiça. Quando sente cheiro de comida, chora, grita e puxa os cabelos. "Eu só descobri que a interposição do íleo é uma cirurgia experimental ao ler uma reportagem em VEJA", diz a advogada. Na edição de 31 de outubro de 2007, a revista dedicou a capa às pesquisas em torno das técnicas cirúrgicas para o controle do diabetes. "E eu nem era diabética", diz Daliana. Até ler a reportagem de VEJA, ela acreditava que a interposição do íleo, como aparecia no laudo da cirurgia, assinado por De Paula, era o nome técnico para a operação de redução do estômago.
A investigação sobre a conduta de De Paula não discute a eficácia da técnica cirúrgica nem a sua competência como cirurgião. A ocorrência de fístulas é um risco inerente a esse tipo de intervenção. O que se questiona é o desrespeito de De Paula às normas, ao tratar como reconhecida uma cirurgia ainda experimental. Na quinta-feira passada, ele disse a VEJA que não daria entrevista, mas acabou defendendo a ideia de que "a cirurgia não é experimental" porque está "consagrada pelo uso". De fato, cerca de 500 pessoas, no Brasil, já se submeteram à interposição do íleo e a técnica foi citada em várias publicações científicas, como a americanaSurgical Endoscopy. Quanto ao fato de que qualquer procedimento terapêutico, no país, precisa do aval do Conselho Federal de Medicina para ser realizado regularmente (o que, enfatize-se, não é o caso da interposição do íleo), ele comentou: "Então, vão ter de parar 250 cirurgias que estão sendo feitas por aí". Em janeiro deste ano, o senador Demóstenes Torres foi operado por De Paula. Hoje suas taxas glicêmicas mostram-se reduzidas e ele já perdeu 37 quilos. Antes de ir para a mesa de operação, o senador lembra que o cirurgião foi claro: "Eu sabia que era uma cirurgia experimental. Ele (o doutor Áureo) me disse com todas as letras que muitas pessoas já tinham feito essa cirurgia, mas que ela ainda não havia sido aprovada definitivamente. Eu fui bastante esclarecido".