MERVAL PEREIRA - Dúvidas da crise
Política

MERVAL PEREIRA - Dúvidas da crise


NOVA YORK. Em meio à perplexidade generalizada com a revelação do gigantesco esquema Ponzi do megainvestidor Bernard Madoff, ouvi recentemente, almoçando no University Club, um dos mais exclusivos da cidade, um banqueiro fazer uma confissão de culpa teórica, em nome do capitalismo, sobre a falta de confiança que o sistema transmite atualmente ao cidadão comum.

Desta vez foi demais, dizia ele, nós estimulamos o endividamento pessoal, inventamos investimentos “criativos”, brigamos por menos regulação e quebramos o mundo. Ninguém confia mais em ninguém.

O University Club, criado em 1861 por um grupo de estudantes de Yale e Columbia, hoje instalado num prédio construído em 1899 em estilo palazzo renascentista em plena 5aAvenida, com sua biblioteca cujo teto tem murais baseados nos existentes nos apartamentos do Vaticano, provavelmente é um dos lugares menos indicados para uma revisão desse tipo, embora seja um bom lugar para discutir a fraude de Madoff e a crise por que passa a economia mundial.

A frase famosa do escritor Mark Twain — “Os boatos sobre minha morte foram um pouco exagerados” — serve bem para se falar sobre o excitamento que o suposto fim do capitalismo está provocando em certos círculos.

Antes mesmo que o candidato a ditador Hugo Chávez tivesse decretado, sob o sol da Costa do Sauípe, na Bahia: “O capitalismo está morto, viva o socialismo bolivariano”.

A frase — de Chávez, não de Twain — não é engraçada apenas por ser uma bobagem, mas também porque entre as muitas vítimas dessa crise do capitalismo estão países comunistas ou com tendências totalitárias, como a própria Venezuela, a Rússia, a China, o Irã e vários países árabes que, recentemente, com o barril de petróleo a US$ 150, ganharam força política e viram sua importância geopolítica crescer, e agora, na mesma proporção, não têm mais condições de aproveitar o que imaginam ser “o fim do capitalismo”.

A tal ponto que Chávez está querendo antecipar ao máximo mais um plebiscito, para tentar ficar eternamente no poder antes que a crise faça a maré descer e revele que ele está “nadando nu”, na imagem do investidor Warren Buffet sobre os efeitos da crise nos investidores.

A intervenção no mercado de governos de diversas tendências — desde o ultra-reacionário George Bush no centro do capitalismo mundial até o autoritário Putin na Rússia e o trabalhista Gordon Brown na Inglaterra — dá a sensação de que só o aumento dos gastos públicos e uma forte intervenção estatal podem salvar a economia mundial.

Nunca foi tão repetida a frase “Somos todos keynesianos” (de John Maynard Keynes, economista inglês que defendeu o papel regulatório do Estado na economia para evitar recessões). É atribuída ao economista Milton Friedman, que ocupou a capa da revista “Time” em 1965, durante uma crise econômica, relembrada pelo expresidente Nixon em 1970, em outra crise.

E não há ninguém que discorde.

Os republicanos estão até fazendo piada, dizendo que precisam pôr anúncio no jornal para conseguir alguém que critique os planos econômicos da futura gestão de Obama, que todos, no mundo inteiro, querem que funcione.

Os liberais não estão encontrando espaço político para criticar as intervenções estatais, que consideram tão equivocadas quanto teriam sido as de Franklin Roosevelt.

Essas, segundo eles, agravaram e prolongaram a Grande Depressão, desencadeada pela quebra da Bolsa, em 1929. Algumas dessas intervenções repercutem até hoje, como a atuação das gigantes hipotecárias Fannie Mae e Fred Mac, novamente estatizadas na crise.

Essas “empresas apoiadas pelo governo” (Government Sponsored Enterprises) foram criadas por ações do governo — a Fannie Mae (Federal National Mortgage Association) em 1938, por Franklin Roosevelt, durante o New Deal, para permitir acesso a financiamentos para a casa própria depois da crise econômica.

Foi privatizada em 1968, para conter o déficit orçamentário provocado pela Guerra do Vietnã, mas sob regime especial.

No governo Clinton, essas agências quase-governamentais foram pressionadas a ampliar o crédito para pessoas de baixa renda, e os republicanos identificam nessa intervenção do governo democrata o início da bolha imobiliária que estourou agora.

O economista prêmio Nobel Paul Krugman, ao contrário, acha que o New Deal não resolveu a crise porque Roosevelt não foi tão fundo quanto deveria ter ido na intervenção estatal, tendo cedido às pressões em 1937, quando reduziu o gasto público, aumentou os impostos e “ajudou a pôr os Estados Unidos em uma profunda depressão”.

Para Krugman, vai levar um bom tempo até que a economia americana consiga se recuperar, e até lá o governo Obama vai ter que manter a intervenção do Estado.

Mas mesmo essa intervenção estatal não significa uma virada anticapitalista no mundo.

Ao contrário, é um esforço para salvar o capitalismo. Por outro lado, capitalismo e democracia sempre tiveram uma estreita correlação, que está sendo deixada de lado com o surgimento de países capitalistas não-democráticos.

Fenômeno que aconteceu bem antes de a crise explodir em setembro deste ano, uma mudança estrutural que está sendo estudada já há algum tempo, com o crescimento da importância da China na economia mundial.

O cientista político Adam Przeworski, professor da Universidade de Nova York, faz uma relação entre a renda per capita de uma população e a probabilidade de a d e m o c r a c i a p re v a l e c e r.

Quanto maior a renda, mais forte a democracia se enraiza, afirma Przeworski.

O historiador Niall Ferguson lembra o período da Grande Depressão nos EUA como tendo sido de grande desafio para a democracia, mas considera que essa ligação entre democracia e capitalismo parecia mais estreita nos anos 80 e 90 do século passado, não sendo mais tão direta no longo prazo da economia mundial.

(Continua amanhã)



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