MERVAL PEREIRA Atrás do voto ético
Política

MERVAL PEREIRA Atrás do voto ético


O GLOBO - 04/09/10

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, responsável direto pela Receita Federal e pela nomeação de Otacílio Cartaxo para comandá-la, depois de um inexplicável mutismo nos primeiros dias — explicável apenas pelo temor de assumir uma posição — resolveu explicar-se ao distinto público com a mesma tática utilizada pelo governo nos diversos escândalos que estouraram nos últimos anos: preferiu admitir que a Receita não tem condições de controlar o sigilo fiscal do contribuinte a admitir que há intenções políticas na quebra de sigilo da filha do candidato do PSDB à Presidência, José Serra, e de pessoas ligadas a ele e ao partido oposicionista.

O próprio Cartaxo já assumira esse papel de desmoralizarse publicamente, admitindo que a Receita estava fora de seu controle, transformada em uma agência de compra e venda de sigilos fiscais.

Tudo é feito para incluir no mesmo balaio as violações claramente políticas e as realizadas com fins puramente financeiros, neste mercado persa em que parece ter se transformado o órgão.

Perversamente, o governo parece respirar aliviado ao constatar que há uma lista de 140 pessoas que tiveram seu sigilo quebrado na agência de Mauá, em São Paulo, podendo dessa maneira confundir as investigações.

Tentando despolitizar o caso, o ministro da Fazenda age igual a um colega seu, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que, como advogado criminal de reconhecidos méritos, trouxe para dentro do governo a tese do caixa 2, para despolitizar o escândalo do mensalão em 2005.

E, da mesma maneira que faz hoje, também naquela ocasião o presidente Lula foi o primeiro a tipificar de crime eleitoral o que acontecia nos bastidores da base governista do Congresso, retirando do mensalão a carga de corrupção política grave que o caso realmente tinha.

Desta vez o presidente Lula tratou a questão da quebra de sigilo da filha do candidato tucano como sendo de crime de “falsidade ideológica”, como se a falsificação da procuração utilizada para retirar da agência da Receita de Santo André os dados fiscais de Verônica Serra fosse o principal crime cometido.

Assim como aconteceu também em 2006, os governistas já começam a gritar aos quatro cantos que a oposição quer ganhar o jogo no “tapetão”, mudando o resultado das urnas na Justiça Eleitoral.

Em primeiro lugar, a eleição não está decidida, apesar da enorme vantagem com que a candidata oficial aparece nas pesquisas eleitorais.

Há no máximo uma tendência de crescimento de Dilma Rousseff que, se continuar, juntamente com o movimento contrário do candidato José Serra, deverá levá-la à vitória.

Mas, se, como alegam os governistas, o PSDB está utilizando o episódio para tentar mudar essa trajetória e levar a eleição para o segundo turno, não há nada de anormal nessa ação política.

O que vem acontecendo dentro da Receita Federal é a consequência de um aparelhamento político da máquina do Estado que vem sendo denunciado há muito tempo pela oposição, e nada mais lógico que ela sublinhe os perigos que a sociedade corre com um tipo de política como a que seus adversários utilizam.

O tema é de difícil compreensão para a maioria dos eleitores brasileiros, e é por isso que a campanha petista considera que terá pouco ou nenhum impacto na decisão final do eleitor.

Pode ser verdade, e constatar isso só aumenta a preocupação com o grau de compreensão de seus direitos dessa imensa massa de eleitores que, na definição do historiador José Murilo de Carvalho, “vive no mundo da necessidade” e votará “muito racionalmente” em quem ela julga capaz de ajudá-la.

Por outro lado, há um nicho de eleitores que já esteve apoiando o candidato tucano, José Serra, no princípio da campanha eleitoral que pode se sensibilizar pelas evidências de que os métodos nada republicanos enraizados na ação política petista são uma real ameaça ao estado de direito.

A candidata oficial, Dilma Rousseff, atualmente vence seu adversário em todas as regiões do país e em todas as classes sociais, mas pode vir a perder alguma substância nas grandes cidades, entre os eleitores de maior escolaridade ou renda, mais sensíveis a esse tipo de ameaça a seus direitos civis.

A mensagem do candidato tucano tem o objetivo de reconquistar esse eleitorado nestes momentos finais da campanha presidencial, e não há nada de errado nessa estratégia.

A acusação de que o PSDB está querendo ganhar a eleição no tapetão jurídico aproveitase do que já considerei aqui um erro estratégico da oposição, que entrou com um pedido de investigação noTribunal Superior Eleitoral (TSE) contra abusos do poder político por parte do governo federal, que estaria usando a máquina do Estado contra a oposição.

Continuo achando que existem fatos e indícios suficientes para que a oposição desencadeie, como vem desencadeando, uma ação política forte contra o governo.

Mas claramente não há ainda, em termos jurídicos, provas concretas que justifiquem uma ação que possa levar à impugnação da candidata do governo.

A campanha tucana alega que só existe esse caminho, e que pedir uma investigação da Justiça Eleitoral não significa tentar impugnar a candidatura adversária.

O pedido de investigação seria uma maneira de chamar a atenção da Justiça Eleitoral para o que está acontecendo, constrangendo assim os que estariam agindo ilegalmente, além de colocar o foco do TSE na questão do abuso do poder político por parte do governo.

Laços ligando a campanha de reeleição de Lula à compra do dossiê em São Paulo eram muito mais evidentes e claros em 2006, e nem por isso o PSDB na ocasião pediu a intervenção do TSE.

A situação atual é muito mais grave potencialmente do que aquela de 2006. Enquanto lá era puro ato de banditismo em campanha eleitoral, hoje há uma quebra constitucional que atinge os direitos civis dos cidadãos brasileiros, até mesmo daqueles que não entendem o alcance da ameaça, os muitos francenildos.



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