A ditadura militar acabou, mas ainda é uma ferida aberta para Milton Nascimento.
"Fui proibido de ver o meu filho. Se eu me encontrasse com ele, falavam que iam matá-lo. Fiquei quase 20 anos [sem vê-lo]", conta. "Ninguém entendia. Mas eu não podia falar com ninguém. Eles queriam me maltratar. Se eu falasse com alguém --não sei como ficavam sabendo--, ameaçavam aquela pessoa. Fiquei calado muito tempo. Comecei a beber".
Milton faz o desabafo à Serafina em sua casa incrustada num morro na Barra da Tijuca, no Rio. Seu filho, Pablo, nascido há 40 anos, é fruto do relacionamento com a socialite paulistana Káritas. O músico conta que foi ameaçado por Erasmo Dias (1924-2010), então secretário de Segurança de São Paulo.
Mas não quer aprofundar o assunto. Acha perigoso, teme represálias. "A situação melhorou. Mas o pessoal [que o ameaçou] ainda está aí, vivo. Prefiro deixar a coisa passar mais um pouco para poder falar sobre tudo", afirma.
Milton fala que parou de beber num dia que viu pessoas bonitas e alegres na praia. "Falei: essa coisa não merece que eu me mate. Parei de beber e fiquei três dias na cama. Até que sentei, vi que não estava tremendo nem tonto. No dia seguinte, fui dirigindo para Três Pontas", recorda.
A história de Milton durante a ditadura também teve censura e racismo. O seu "Milagre dos Peixes" (de 1973, que contém a música "Pablo") virou um disco quase instrumental depois da tesoura imposta. "Era muito perseguido. Fui chamado várias vezes", diz.
Numa delas, agentes do Dops queriam que ele desmentisse uma declaração sobre racismo. Milton tinha visto a filha do músico Paulo Moura ser barrada, por ser negra, em um clube em Copacabana. Protestou e denunciou à imprensa.
"Diziam que no Brasil não tinha racismo. Não desmenti porque estava do lado da menina, vi tudo". Ele próprio foi barrado. "Em muitos lugares não me deixavam entrar por ser negro", afirma.
Filho de uma empregada doméstica, Milton nasceu no Rio em 26 de outubro de 1942. Sua mãe biológica morreu de tuberculose quando ele tinha menos de dois anos. O pai ele nunca conheceu.
Órfão, foi adotado pela filha recém-casada da família da casa onde sua mãe trabalhara. Mudou-se com os novos pais para Três Pontas, Minas.
"Minha mãe [adotiva] sofreu muito. Ela casou com um cara e dois meses depois apareceu com um filho negro".
Aos quatro anos, recebeu de sua madrinha seu primeiro instrumento: uma sanfona, relíquia que guarda até hoje.
Milton estudou contabilidade no segundo grau e desistiu do vestibular para economia. Queria ser músico e astrônomo. "Não tinha faculdade de astronomia em Belo Horizonte. Então continuei só com a música". Mas mantém, até hoje, um telescópio no Rio e outro em Três Pontas.
O caminho da música não foi fácil. O final dos anos 1960, em São Paulo, ele lembra como uma época triste. "Não era chamado para nada".
É TUDO VERDADE
Foi quando teve uma experiência num centro espírita. Relata ter visto uma "entidade" em 1967. "Ela falou que eu não podia ser triste porque muita gente ia precisar de mim. Disse que em tantos dias iria acontecer uma coisa que eu nem iria acreditar. E em tantos dias eu estava no Maracanazinho defendendo 'Travessia'", afirma.
Hoje, acredita "em tudo". Além do espiritismo, já teve contato com o candomblé. "Fui criado na religião católica. Era coroinha, um dia briguei com o padre e resolvi não seguir mais o catolicismo", explica.
O rompimento precoce não impediu que, mais tarde, ele realizasse a "Missa dos Quilombos" (1982), com dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, tratando de escravidão e preconceito. As temáticas la tino-americanas, dos povos indígenas e da ecologia passaram a ser objeto de sua criação.
Milton está comemorando 50 anos de carreira e 40 do Clube da Esquina, o movimento mineiro que embalou gerações. Voz da campanha das Diretas ("Menestrel das Alagoas", 1983), fez campanha por Tancredo Neves. Hoje quer distância da política.
Mas confia muito em Dilma. Há pouco tempo, localizou numa foto antiga a moça que viria a se tornar presidente. "Ela era muito ligada. A gente se reunia, ia aos bares".
E gosta de namorar. Mas está sozinho no momento. "Agora, estou viajando. Mas não posso viver sem namorar. Não posso, nem quero", fala.
E encara com naturalidade rumores sobre sua homossexualidade. "Não ligo para isso. Acho que ninguém tem nada a ver com nada".
Em 1989, Milton compôs a música "River Phoenix (Carta a um Jovem Ator)" em homenagem ao jovem loiro e bonito que descobriu quando via filmes na TV em um hotel em Nova York em 1988. Tornaram-se amigos e trabalharam juntos no álbum "Txai" (1990). River veio ao Brasil em 1992, um ano antes de sua morte.
Neste ano, Milton já escreveu sete letras (uma delas em homenagem a Portinari). Em 2013, sai um novo CD. E ainda esse ano, um DVD. Continua com o pé na estrada. É fazendo shows que ganha dinheiro. "Gosto de viajar." Os namoros ficam para depois.
*Matéria encontrada no site do jornal Folha de São Paulo.
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