Navegação e democracia - Roberto DaMatta Jornal O Globo
Política

Navegação e democracia - Roberto DaMatta Jornal O Globo


Navegação e democracia - Jornal O Globo


Navegação e democracia


Em casa há transições e explorações. Não há navegação. Os grandes percursos que descobrem mundos e promovem mudanças ocorrem na rua. Ou melhor, no debate entre a casa e a rua. A primeira produzindo acontecimentos desafiadores, a segunda invocando calma e propondo o realismo dos limites.
No caso do Brasil, a compreensão a partir da casa revela um pensamento fundado no afeto e nas relações pessoais. Ela é o avesso de um mundo público baseado no indivíduo como cidadão e na mudança burocrática e legal — na vã esperança de que as regras mudem os jogadores ou consertem a sociedade.
Passamos da aristocracia para a República e do trabalho escravo ao livre; transitamos entre republicanismos federativos e centralizados e daí para regimes ditatoriais de vários matizes. E, em todo essa caminho tortuoso, demoramos mais para legitimar o divórcio do que para engolir ou aplaudir as ditaduras!
À relativa imutabilidade da casa corresponde a variedade das leis e regimes políticos da rua. Quando mais regras sem internalização efetiva ou legitimidade, mais atua o bom senso do compadrio, da amizade ou do partidarismo — esse neocoronelismo fundado nos latifúndios ideológicos das utopias e dos projetos de poder. Mas onde fica o país? Na casa, na rua ou recebendo o pior dos dois?
Isso é teatro, dizia meu pai engolindo o choro ao ver minha mãe soluçar diante do desfecho inevitavelmente feliz da novela, cujas confusões eram finalmente "arrumadas". O olhar da família é dominante porque até hoje supomos que o Brasil possa ser resolvido. Embora cada episódio histórico deixe uma sobra, nós continuamos crendo que a sociedade, tal como nos contos de fada, possa ser vivida como uma casa, na qual nascimentos, casamentos e funerais encerram certas situações.
A casa vive de ciclos descontínuos, a rua de uma história contínua, repleta de novidades e contradições. Podemos esquecer a história, mas não perdoamos os dramas da casa. A casa brasileira é uma máquina de canibalizar e domesticar acontecimentos. Ela certamente reprime mais do que liberta. Aplicada ao governo, quando uma supergerente do Brasil compra refinarias num negócio da China, verifica-se o tamanho da encrenca.
Testemunhei discussões políticas nas quais meus tios anunciavam o fim do capitalismo e o nascimento do socialismo; para, a seguir, ver como minha avô Emerentina sentava comunistas, fascistas, nacionalistas e americanistas para um almoço no qual o gosto da comida dissolvia todas as divergências. Já nos Estados Unidos, conheci radicais rompidos com a família e, na Inglaterra, comunistas que não falavam com liberais e vice-versa. Nesses universos as regras da rua e do mundo — igualdade, autonomia, escolhas individuais e dinheiro — operavam também na casa. Tal como as regras de um jogo de futebol (inventado por esses ingleses) valem para os dois times a despeito de todas as vontades.
Se uma sociedade transforma seus costumes em leis universais, deixando que elas governem tanto a sua vida doméstica quanto o seu mundo político e econômico, a dualidade entre casa, rua e outro mundo perde muito a sua capacidade de engendrar conflitos. Não se pode mudar os sentimentos, mas sabe-se que o seu julgamento será feito pela mesmas regras que governam as pessoas e as coisas em geral. Quando isso ocorre, a ideia não é mais de resolver ou arrumar o mundo, mas de refazê-lo todos os dias. Essa é uma premissa do liberalismo que é mal entendida no Brasil. A questão não é "ser" de direita ou de esquerda, mas é também (e sobretudo) de seguir as regras democraticamente legitimadas de modo consistente, o que é muito difícil num sistema aberto a uma lógica dupla que não é discutida com a seriedade que merece. Convenhamos que nenhum socialismo aguentaria tanta roubalheira, incompetência e hipocrisia.
No plano ético, a transparência moderna não é para amigos e parentes, é para todo mundo. A culpa é tão intransferível quanto o talento. No Brasil, graças à revelação inexorável de cenas vergonhosas na televisão, verificamos que a sinceridade (essa gêmea da transparência) é um ativo e um dever apenas para com os amigos.
Lava-se roupa suja em casa. Pior do que o velho mote: aos amigos tudo, aos inimigos a lei; e o cínico: o bandido é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo; é lembrar o que dizia Nunes Machado, um líder morto na Revolução Praieira, que, num Pernambuco de 1849, manifestava o ideal de liberdade e igualdade em pleno império. Eu — dizia ele com uma rara sinceridade — sou capaz de todas as coragens menos da coragem de resistir aos amigos!
A Praieira ficou registrada na História. Mas seu republicanismo seria dissolvido pela falta de coragem de resistir aos amigos. Não estou pregando o fim da doçura doméstica. O que revelo é a dificuldade de fazer democracia navegando com duas bússolas: uma para os amigos e outra para os outros.
Há uma República, mas ela até hoje não teve a coragem de resistir aos amigos, porque a politização positiva — a tão falada "conscientização" — jamais se conscientizou de que, para passar das graduações afetuosas da casa para a impessoalidade que o igualitarismo demanda na rua, há muito mais do que pensa o nosso democratismo de bolso, o qual não faz nenhum esforço para distinguir eficácia, mérito e roubalheira; de simpatia, partidarismo e amizade.
A amizade e a afeição fazem com que a casa devore a rua, quando a vítima é importante. Caso contrário, ela primeiro morre para, em seguida, sua família ser recebida domesticamente pelas autoridades.
A casa salva a rua? Ou é a rua que vai salvar a casa?



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