O Albatroz Azul, de João Ubaldo Ribeiro
Política

O Albatroz Azul, de João Ubaldo Ribeiro


Crepúsculo em Itaparica

O herói de O Albatroz Azul, de João Ubaldo Ribeiro, enfrenta
a morte com serenidade – apesar de sua espiritualidade confusa


Jerônimo Teixeira

Tasso Marcelo/AE

JOÃO UBALDO RIBEIRO
Adágios rimados e barbeiros que falam "bacharelês"

Feitiçaria do bem

"Iá Cencinha repetia e não se cansaria de repetir que desprezava as abusões e crendices dos negros, muito menos quando desembocavam em feitiçaria e numa perigosa proximidade com – se benzessem todos! – o Maldito. Mas, mesmo fruto da ignorância de pagãos selvagens, as práticas dos negros e o que eles chamavam de trabalhos, quando empregados em favor de uma causa justa, mereciam apoio e amparo. (...) O que de mau trouxessem as negrices, os santos transformariam em bom"


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Homem obstinado, obediente às ordens do coronel que o apadrinhou na Polícia Militar de Sergipe, o sargento Getúlio Santos Bezerra carrega seu prisioneiro do sertão para Aracaju ciente de que possivelmente será morto na chegada. Esse era o herói de Sargento Getúlio, segundo livro de João Ubaldo Ribeiro, lançado em 1971. O mais recente romance do autor baiano, de 68 anos, traz novamente um protagonista que caminha, imperturbável, para a própria morte. Mas o velho Tertuliano de O Albatroz Azul (Nova Fronteira; 240 páginas; 39,90 reais) não é um jagunço truculento: herdeiro decaído de grandes proprietários de terra, é um homem de bem que, no dia do nascimento de um neto, descobre equívocos presságios de que sua hora se aproxima. Sargento Getúlio era um livro repleto de furiosa turbulência. O Albatroz Azul é quase sua imagem em negativo: um livro sereno e crepuscular.

A comparação obriga a dizer que Sargento Getúlio é um livro por todos os critérios superior – mais bem estruturado e mais criativo no uso do vocabulário regional. Mas O Albatroz Azul é ainda uma bela mostra do invejável domínio do escritor sobre seu meio de expressão. Cada personagem fala com uma linguagem única – do barbeiro pernóstico que se exprime num engraçado "bacharelês" à matriarca cuja sabedoria se resume a uma coleção de adágios rimados ("casa varrida e mulher penteada parecem bem e não custam nada"). A história se passa em alguma data indeterminada no início do século XX, na Ilha de Itaparica (terra natal do autor), na Bahia. Tertuliano é um personagem poderoso: voluntarioso, impositivo, mas ainda assim frágil, traumatizado por um episódio brutal da infância.

Seu pai, bígamo – constituíra família com duas irmãs –, teve de se casar com uma de suas mulheres para receber uma herança. Para não ser prejudicado na sucessão, o garoto Tertuliano foi instado a renegar a própria mãe e se declarar filho da outra. Recusou-se, em um gesto de dolorida dignidade. Sentia que sua vida fora de algum modo roubada naquele momento – e o neto homem que nasce logo no início do livro vem de algum modo redimir essa falta. A busca espiritual de Tertuliano resulta um tanto vaga e confusa, misturando concepções espíritas e filosofices populares. Mas o parágrafo final põe as coisas no lugar.


LIVROS

Trecho de O Albatroz Azul,
de João Ubaldo Ribeiro

Mas nesse caderno ele não poria fogo. Ia guardá- lo bem guardado, talvez o emparedasse ou enterrasse, bem enrolado e protegido. Não, simplesmente o deixaria trancado numa gaveta. Era melhor, pois poderia desfrutar da sensação de vê-lo anos mais tarde, tantos quantos ainda tivesse pela frente. Sacou os óculos do bolso, ajeitou os arames e pressionou os esparadrapos que todo dia se prometia trocar, tirou o caderno do mocó, abriu-o diretamente no ponto que buscava, as bordas do papel já recurvas e encardidas de tanto manuseio. Lá estava escrito, em letras de imprensa calcadas em linhas grossas de lápis número um: Nome de Baptismo: Raymundo Penaforte. Era o nome que, sem admitir discordância, imporia a Saturnino e Belinha, que, além do mais, estavam desprevenidos para nomes de homem, porque esperavam desencalmados uma nova Maria, quem sabe desta vez uma Socorro, para ver se o bom Deus, por ela instado, detinha proliferação tão persistente quão custosa e trabalhosa. Provavelmente, Raymundo Penaforte Vieira da Anunciação, por causa dos sobrenomes dos pais, que com eles podiam fazer o que quisessem, não lhe interessava. Aliás, não. Isso era verdade fazia bem pouco tempo, talvez semanas, talvez dias, talvez horas. Não sabia por quê, surpreendia em si uma atitude bem diversa da habitual, a que professava desprezo por sobrenomes e linhagens. Não, não, por alguma razão desconhecida, mudara de modo de ver. Por que seria? Bem, não interessava, depois pensaria nisso, talvez fosse arte da velhice, todo dia a velhice lhe trazia uma novidade, parecia coisa de menino crescendo. É, não interessava. O fato era que de repente a questão do sobrenome se tornou essencial e, pela primeira vez em sua vida, pensou que um dia pudesse ter como descendente o príncipe de uma nova dinastia, podia ser esse seu neto. E ele, Tertuliano, seria o originador dessa nova dinastia, por que não? Não vivera uma vida gloriosa porque não era seu destino, como não tinha sido o destino dos outros incontáveis netos nascer num momento de sua existência como aquele em que Raymundo Penaforte nasceria. Seu destino, pensou ele, tinha sido preparar as glórias do seu grande neto, o que, em si, já continha sua própria glória. Sim, ventos e sopros, uma certa confusão no juízo e no coração, a vida sempre ensinando lições nunca antecipadas. Mas não era necessária nenhuma afobação, a confusão devia dissipar-se e cada coisa a seu tempo. O que interessava era o primeiro nome do menino, o batismal, o de cabeça. Era como se um dos sopros, ou vários deles, lhe houvessem ditado o nome que, inspirador de respeito e dificílimo de ignorar, o satisfazia tanto. Na verdade, não tinham sido bem os sopros que lhe determinaram o nome, mas era como se tivessem. De início raros, mas cada vez mais frequentes e oriundos de todos os quadrantes, os sopros lhe fizeram ver, com per- tinácia e veemência, aquilo que convinha a menino tão exaustivamente futurado.


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