O fato é que, sob o governo Dilma, o ímpeto da expansão do capitalismo no País segue o seu curso, evidentes, a esta altura, os sinais de que esse movimento não obedece apenas a uma simples lógica naturalística, mas que já se constitui num processo politicamente orientado. Mais do que gestora, Dilma investe-se do papel de primeira executiva em geral do capitalismo brasileiro, concebido como um projeto nacional a ser implementado de modo decisionista pelo Poder Executivo e sua sofisticada tecnocracia. Entre vários outros, mais um indicador dessa inovação em termos de estilo de exercício de poder está na sua diplomacia presidencial, centralmente orientada para a projeção da economia do País no cenário internacional e refratária, sem alarde, a postulações político-ideológicas. Se coube antes, não lhe cabe mais a imagem de uma simples gerente da administração pública, porque já está aí o esboço de um perfil forte de dama de ferro do capitalismo brasileiro.
De outra parte, a expansão da experiência capitalista no Brasil não é mais apanágio do Centro-Sul, o agronegócio abriu-lhe o hinterland, introduzindo mutações irreversíveis na sua composição demográfica e na sua estrutura social. E por toda a imensa região da fronteira ela ativa e energiza a iniciativa dos seus setores subalternos, cria e expande mercados.
Essa vigorosa difusão da vida mercantil, contudo, se afirma num cenário desértico quanto à estruturação do político e à difusão de valores cívicos. Nas ciclópicas obras da construção de usinas hidrelétricas, que ora têm lugar nessa região de fronteira - empreendimento de grandes empreiteiras, financiado, em boa parte, com recursos estatais -, são mobilizadas centenas de milhares de trabalhadores, a maior parte deles conhecendo o seu primeiro emprego formal e a sua primeira exposição às leis trabalhistas e à vida sindical, que agora começa a chegar-lhes, em meio a greves selvagens e a atos tumultuados de protesto contra as precárias condições de trabalho com que se defrontam.
Por cima, a emergência de novas elites que fizeram a sua história à margem das lutas pela democratização do País. Por baixo, a presença multitudinária de trabalhadores e de homens em busca de oportunidades de vida, um capitalismo de faroeste que tem forçado, às vezes com sucesso, as portas de entrada da política, como neste Goiás de Carlinhos Cachoeira - personagem tão expressivo desse mundo quanto o foi, em Serra Pelada, o major Sebastião Curió -, espécie refinada de um gângster de bons modos e de bom gosto que parece saído de um romance de Scott Fitzgerald.
A natureza quasímoda do nosso sistema político - tradicional composição heteróclita do moderno com o atraso, este, no caso, representado pelas oligarquias tradicionais, filhas do nosso secular exclusivo agrário - torna-se ainda mais aberrante com a incorporação, como se tem apurado nas investigações em curso, dessa floração de um capitalismo sem lei, que, com métodos de máfia, se infiltra em grandes empresas, nas estruturas do Estado e do Ministério Público - lugar de origem da escalada política do senador Demóstenes Torres - e também na sede do Poder que representa a soberania popular.
As coisas humanas andam, e o seu andamento sinaliza, para o governo Dilma, o que talvez fosse ainda pouco visível para o seu antecessor: o presidencialismo de coalizão, na forma como vem sendo praticado, converteu-se numa política de alto risco para a democracia brasileira. O presidencialismo de coalizão, decerto, tem-se mostrado, entre nós, como uma via institucional adequada a fim de afiançar governabilidade, especialmente após a experiência frustrada do governo Collor, que se pretendeu pôr acima dos partidos. Mas a reiteração acrítica da sua prática, em particular no segundo mandato de Lula e na articulação da composição ministerial do governo Dilma, cuja montagem original não resistiu sequer a poucos meses de operação, não deixa mais dúvidas quanto à necessidade da revisão do seu modo de operação. O affaire Demóstenes-Cachoeira, com a CPI "do fim do mundo" ou sem ela, bem que pode ser a gota d"água.
Nessa forma de presidencialismo, a coalizão deve-se dar em torno de políticas, e não de interesses avulsos e fragmentados, como na nossa experiência atual, a qual, ao ratear benefícios e prebendas a granel, com a pretensão de garantir insulamento para a política decisionista e tecnocrática do Executivo, franqueia as estruturas do Estado à apropriação por parte de particularismos privatísticos, quando não do crime organizado por meio de redes de estilo mafioso.
A História contemporânea é farta em exemplos no sentido de mostrar que, por trás da projeção nacional dos Estados bem-sucedidos, há uma República, destino para o qual nos tangem os fatos, já desavindos com essa democracia de interesses que converteu a política num processo penal sem fim.
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio