O Programa Nacional de Direitos Humanos, por enquanto um documento de intenções do governo Lula, é uma espécie de cavalo de tróia.
Por fora, é belo e atraente; por dentro, embute (mas não oculta) uma série de anomalias institucionais, que comprometem o direito de propriedade, a liberdade de imprensa e de expressão e, no fim das contas, o próprio conceito de direitos humanos.
O texto relativiza o direito de propriedade, legitimando invasão e ocupação de terras, urbanas e rurais, em nome da justiça social. Justiça, como democracia, dispensa adjetivos.
Em 1964, o lendário advogado Sobral Pinto reagiu ao termo "democracia à brasileira", emitido pelo presidente Castello Branco, dizendo que não existia tal regime.
Existe, disse ele, "peru à brasileira", "farofa à brasileira", mas democracia é ou não é. No caso, disse ele, não era. E não era mesmo.
Mais tarde, o presidente Geisel sustentou o conceito de "democracia relativa", igualmente combatido em nome da mesma lógica, que se aplica, sem tirar nem pôr, à justiça.
O que é justo dispensa complementos, que servem apenas para relativizá-lo.
O tal Programa escora-se nos termos "justiça social" e "direitos humanos" para, a pretexto deles, restringir liberdades e centralizar poderes no Executivo. Tudo – ensino, imprensa, produção editorial, artes cênicas, propriedade - passa a depender deles, de maneira incondicional, à revelia dos limites da lei.
É legítimo e indispensável que o país, que possui a maior extensão contínua de terras agricultáveis do planeta, discuta e empreenda uma reforma agrária.
Mas não significa que essa demanda tenha que ser atendida à margem da lei, sobretudo quando se vive num Estado democrático de Direito, com leis específicas regulando o acesso à terra e estabelecendo restrições à propriedade improdutiva.
Até aqui, a tentativa de reforma agrária na marra apenas conspirou contra a reforma agrária. Não há como obtê-la senão pela lei ou pela revolução.
Como a segunda hipótese implica a supressão da democracia, o temor com o tal Programa é justificado.
A paz no campo não será obtida ignorando cláusulas pétreas da Constituição. E é o que tem ocorrido. Há uma CPI instalada no Congresso, a do MST, para investigar exatamente isso.
A invasão e destruição de propriedades produtivas, incluindo laboratórios de pesquisas, equipamentos e moradias de trabalhadores, têm ocorrido com freqüência aterradora.
Em alguns estados, como o Pará, os governantes simplesmente ignoram liminares e decisões judiciais de reintegração de posse, em nome da justiça social.
Os movimentos ditos sociais, pelo simples fato de se declararem como tais, têm seus atos legitimados independentemente de seu conteúdo.
Como se não bastasse, há questionamentos sobre o uso dos recursos estatais e privados que sustentam esses movimentos, que deles não prestam contas.
A própria instalação da CPI do MST foi contestada a partir do argumento de que não se deve tocar nos movimentos sociais. Muito ao contrário, um movimento com tal responsabilidade não pode gerar dúvidas sobre suas ações e objetivos.
Mas o Programa Nacional de Direitos Humanos, que mexe na Lei de Anistia, responsável por 30 anos de paz política, vai ainda mais longe: quer regular os veículos de comunicação, que têm sido os grandes paladinos na defesa dos direitos humanos.
O inciso I, alínea d, do Programa, estabelece como "objetivo estratégico":
"Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações".
E vai por aí, ao estabelecer idênticas metas no ensino, na formação das Forças Armadas, no financiamento de obras de arte e cultura etc.
Nesse quesito, o texto estabelece a meta de "incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares, voltada para a educação em Direitos Humanos e que reconstrua a história recente do autoritarismo no Brasil, bem como as iniciativas populares de organização e de resistência".
Ou seja, pretende, além de tudo – e em nome da causa - reescrever a história do país, sob o prisma dos patrocinadores.
Eis aí o cavalo de tróia, em cujo interior conspira-se contra a democracia, sem a qual não há direitos humanos.
Em suma, o conteúdo nega a embalagem.
Ruy Fabiano é jornalista