Sérgio Martins
AE |
O HOMEM E O MITO Villa-Lobos ao piano: ele dizia que havia sido perseguido por canibais e que sua obra tinha mais de 1 000 peças. A segunda informação é verdadeira |
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Na Europa, efemérides dos grandes compositores eruditos costumam ser celebradas até com certo exagero. Os 250 anos de nascimento do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e os 250 da morte do alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) ensejaram incontáveis concertos, gravações, homenagens. No dia 17 de novembro, completam-se cinquenta anos da morte do maior compositor que o Brasil já teve, Heitor Villa-Lobos (1887-1959). A data não está passando em branco – as Bachianas Brasileiras estão no programa das principais orquestras do país. Mas as celebrações são modestas. As iniciativas do Ministério da Cultura, por exemplo, resumem-se a uma reedição, a cargo da Funarte, do Guia Prático, livro de canções folclóricas escrito por Villa-Lobos na década de 30, e a uma homenagem na entrega da Ordem do Mérito Cultural (a medalha é dada às pessoas que se destacaram no mundo das artes). Poderia ser aceitável – se não houvesse tanto a fazer. Os fundamentos para uma boa divulgação – e uma boa compreensão – da exuberante produção musical de Villa-Lobos ainda não foram lançados: não existem edições confiáveis de suas mais de 1 000 composições, nem sequer de algumas das mais conhecidas. Passados cinquenta anos de sua morte, o necessário trabalho de revisão de sua obra mal começou.
O carioca Villa-Lobos está para o Brasil assim como Sergei Prokofiev (1891-1953) está para a Rússia ou Aaron Copland (1900-1990) para os Estados Unidos. Os três eram bem versados no cânone da música clássica – e buscaram aproximá-la das fontes folclóricas e populares. Villa-Lobos participou da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e era um representante ortodoxo do nacionalismo da primeira geração modernista. Criou, de fato, uma linguagem musical de acentuado sabor brasileiro, como se pode notar nos Choros e especialmente nas Bachianas, ciclo de nove obras dedicadas a Johann Sebastian Bach que trazem elementos de seresta e de música folclórica. "Villa-Lobos não é um compositor brasileiro, ele é o próprio Brasil musical", diz John Neschling, ex-diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo, à frente da qual gravou a integral dos Choros.
Falastrão, Villa-Lobos gostava de cultivar mitos sobre si mesmo. Dizia que fora perseguido por canibais quando fazia pesquisas sobre música indígena. Jactava-se de haver escrito mais de 1 000 obras – e, nesse caso, não há exagero: embora sua produção nunca tenha sido devidamente catalogada, músicos e estudiosos costumam ter como certo que ele ultrapassou esse limiar. Bailados, concertos, obras corais, quartetos: Villa-Lobos exercitou-se em quase todos os gêneros, nem sempre com o mesmo acerto – suas óperas, por exemplo, são em geral medíocres, e suas sinfonias, embora tenham momentos de brilho, não se comparam em originalidade às Bachianas nem aos Choros.
O descuido com a precisão das partituras começou com o próprio Villa-Lobos. Prolífico, ele escrevia em qualquer tempo ou lugar. Gostava de compor enquanto ouvia radionovelas. A pianista Lucília Guimarães, sua primeira mulher, costumava revisar seus escritos, mas o casamento acabou em 1936, quando o músico, em viagem pela Europa, decidiu romper com ela – por carta. Os lapsos são comuns em seus manuscritos. Há partituras em que ele simplesmente se esquece de completar a parte de um instrumento. Outras exigem correções de articulação, dinâmica e intensidade. "Em alguns momentos, a escrita de Villa-Lobos pede para que todos os músicos toquem forte, ao longo da peça inteira. O regente tem de corrigir isso", diz Roberto Minczuk, diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, que já gravou as Bachianas Brasileiras com a Osesp.
Agravando a bagunça inata do compositor, sua editora internacional, a francesa Max Eschig, foi desleixada no tratamento de sua obra. Já existe um projeto de revisão da música de Villa-Lobos, sob responsabilidade do maestro Roberto Duarte, respeitado especialista no legado do compositor carioca, e da Academia Brasileira de Música (instituição fundada pelo próprio Villa-Lobos, em 1945). A ABM fez um acordo com a Max Eschig: entregaria à editora francesa, sem custos, versões corrigidas das partituras e, em troca, ficaria com os direitos autorais para a América Latina. Até agora, Duarte já recuperou dezesseis obras de Villa-Lobos, entre as quais Rudepoema (escrito em homenagem ao pianista polonês Arthur Rubinstein), os Choros 6, 7 e 10, três concertos e três danças – mas a Max Eschig ainda não lançou as partituras revisadas. Mal começado, o projeto já parou por dificuldades financeiras: o patrocinador da revisão freou os investimentos. Aliás, uma das homenagens mais vistosas previstas para o aniversário da morte do músico também esbarra na falta de patrocínio: a exposição Viva Villa!, prevista para começar no dia 12 de outubro, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, quer mostrar fotos de arquivo, filmes caseiros, partituras e músicas do compositor, dispostas em cinco vagões de trem – alusão ao Trem do Caipira, movimento da Bachiana 2. A Clã Design, empresa que está organizando a mostra – com acervo do Museu Villa-Lobos (fundado em 1960 por Mindinha, a segunda mulher do músico), entre outras instituições –, foi autorizada a captar 1,2 milhão de reais por incentivos da Lei Rouanet, mas ainda faltam patrocinadores para completar a cifra.
Museu Villa-Lobos |
NACIONALISMO MUSICAL |
A edição defeituosa da obra de Villa-Lobos dificulta sua execução, sobretudo no exterior. Maestros estrangeiros, menos familiarizados com as referências musicais do compositor brasileiro, têm dificuldade em fazer as emendas necessárias. "Em 1987, o maestro Kurt Masur deixou de realizar um concerto inteiramente dedicado a Villa-Lobos porque se cansou de consertar os problemas da partitura", relata Vasco Mariz, biógrafo do compositor. Neste ano de efeméride, as récitas de Villa-Lobos no exterior estão a cargo de brasileiros. Roberto Minczuk vai reger a integral das Bachianas em Tóquio, em agosto. Em outubro, o regente João Carlos Martins apresenta a Bachiana 7 no Carnegie Hall, em Nova York. E, no fim do ano, o violoncelista Antonio Meneses e a pianista Cristina Ortiz farão recitais no Japão, na China e em Paris. Paradoxalmente, o ouvinte brasileiro que deseja incluir as obras fundamentais de Villa-Lobos em sua discoteca tem de recorrer a discos importados, nem sempre fáceis de encontrar. A integral das Bachianas pela Osesp, com regência de Minczuk, só saiu por um selo sueco, o Bis. Os Choros são mais acessíveis: também pela Osesp, com o maestro John Neschling, foram lançados no Brasil pela Biscoito Fino.
Politicamente, Villa-Lobos não foi exceção em sua época: como tantos intelectuais seus contemporâneos, foi cooptado pelo governo de Getúlio Vargas. Assumiu a Superintendência de Educação Musical e Artística em 1932 e estabeleceu um razoavelmente bem-sucedido programa de ensino de canto orfeônico nas escolas. O compositor sonhava com um país de formação musical mais sólida. Sua criatividade merecia ser honrada com maior respeito por sua música, em vez de com medalhinhas.