A vitória de Obama não acaba com o racismo de cada
um, mas é um marco de igualdade racial num país em
que o conflito de negros e brancos ainda dói
André Petry
O sermão do topo da montanha
Martin Luther King foi assassinado a tiros no dia 4 de abril de 1968 em Memphis, no estado do Tennessee, menos de 24 horas depois de fazer este discurso, em que, para alguns, pressentiu a própria morte. "Bem, eu não sei o que virá agora. Teremos dias difíceis pela frente. Mas isso não importa para mim agora porque eu subi ao topo da montanha.
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Juanita Abernathy é uma ilustre moradora de Atlanta, no estado da Geórgia. Ela é viúva de Ralph Abernathy, morto há dezoito anos, o reverendo que nos anos 50 e 60 era unha e carne com o pastor Martin Luther King, herói da luta dos negros por igualdade nos EUA. Juanita era amiga da mulher de Luther King, Coretta. Juntos, os dois casais formavam um quarteto que comeu o pão que o diabo amassou na batalha pelos direitos civis. Foram hostilizados, presos, ameaçados de morte. Sofreram atentados a bomba em casa, quando seus filhos ainda eram pequenos. Dos quatro, Juanita é a única sobrevivente. Na noite de terça-feira, ela reuniu velhos amigos na sua casa em Atlanta para assistir à contagem dos votos da eleição presidencial. Louça de festa, prataria polida, comida caseira. Quando, pouco depois das 11 da noite, surgiu na tela da TV uma imponente legenda informando "Barack Obama eleito presidente dos EUA", Juanita vibrou e pulou, conforme o relato publicado pelo The Atlanta Journal-Constitution. "Meu presidente! Meu presidente!", dizia. "Já dá para ver as menininhas dele correndo e brincando pela Casa Branca!" Mas, logo depois do entusiasmo, Juanita não conteve a emoção. Caiu na poltrona e chorou: "Vocês não entendem, não entendem... Como sofremos. Oh, Senhor! Oh, Senhor! Que preço pagamos por isso!".
O mais alto preço foi pago no dia 4 de abril de 1968, quando Luther King foi morto a tiros às 6h01 na sacada de um hotel em Memphis, no Tennessee, um dia depois de fazer um de seus discursos mais iluminados, no qual muitos dizem que pressentiu a própria morte (veja o trecho final no destaque acima). Nesse sermão, King, mais uma vez, mostrou-se um pacifista inspirado. Disse o seguinte: "Há anos, os homens têm falado de guerra e de paz. Mas agora não temos mais de falar nisso. Não existe mais a escolha entre violência e não-violência neste mundo: é não-violência ou não-existência". Seu assassinato espalhou protestos por 125 cidades americanas. Deixou 46 mortos e 2 600 feridos. Com sua liderança sensata e carismática, King tinha clareza de que a luta contra o racismo, sozinha, não dizia nada. Sabia que era preciso lutar por justiça e pelo direito de ser feliz. Com sua bravura e seu sangue, King tornou-se fundador da moderna democracia americana, que incorporou uma massa de excluídos – e chegou, na semana passada, à eleição de seu primeiro presidente negro, cuja vitória só foi possível, e este é o dado notável, com o voto maciço dos brancos.
Bettmann/Corbis/Latinstock |
UM SEGREGACIONISTA |
Deflagrado nos anos 50, o movimento pelos direitos civis nos EUA começou contra a segregação racial, que dividia negros e brancos por bairros, escolas, empregos, ônibus, banheiros públicos e bebedouros. Depois, além da segregação, passou a lutar pelo direito de votar e ser votado, e pela abolição de todas as leis racistas do país. Não foi uma luta só entre negros e brancos, mas também entre os próprios negros. Malcolm X, celebrizado na pele do ator Denzel Washington no filme de Spike Lee, é o líder mais conhecido da dissidência. Ele era um defensor da separação total entre negros e brancos. Virou líder da Nação do Islã, grupo religioso e separatista, ao qual também aderiu Cassius Clay, o célebre tricampeão mundial de boxe que virou muçulmano e trocou de nome para Muhammad Ali. Malcolm X acabou rompendo com a Nação do Islã, peregrinou até Meca, virou muçulmano sunita e morreu assassinado quando fazia um discurso em Nova York, em 1965 – morreu defendendo o nacionalismo negro. Hoje, a Nação do Islã é comandada por Louis Farrakhan. É uma voz ainda radical, ainda separatista; tão radical que, quando Farrakhan anunciou seu apoio a Obama, o candidato, que fez o que pôde para não associar sua candidatura à comunidade negra, o que estreitaria seu leque de apoio, teve de vir a público para recusar o apoio. Fez bem. Farrakhan é uma voz do passado. E Obama não é contra o separatismo negro por razões eleitorais. Nem de longe. Ele é, genuinamente, um filho do pós-racialismo.
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FÚRIA INTERIOR |
O conflito racial é parte inseparável da história americana. A escravidão, que começou junto com o nascimento da velha colônia inglesa, é um sinônimo de dor para negros e tormento moral para brancos. A eleição de Obama pode amenizar esses sintomas, mas ninguém acordou no dia seguinte à sua vitória menos racista do que era no dia anterior. Sua escolha para presidente não marca o fim do racismo individual, que pode estar oculto na alma de muitos brancos, mas é um marco de igualdade racial entre negros e brancos no convívio social, que é o que importa. De certo modo, impõe aos negros americanos um novo desafio – deixar de atribuir ao passado escravocrata e segregacionista todas as misérias do presente. Mas é um bom desafio. É aquele que Martin Luther King desejou nas várias noites em que discutiu o futuro dos negros sentado à mesa de carvalho de Juanita Abernathy, onde, na semana passada, se alinhavam louça de festa, prataria polida e comida caseira para saudar a primeira família negra que vai morar na Casa Branca.
Fotos Bettman/Corbis/Latin Stock/Susan Walsh/Fritz Reiss/AP