Jerônimo Teixeira
Marc Ferrez/IMS | |
Dois países patifes Miguel de Novais, artista e fotógrafo português, escrevendo de seu país natal para o cunhado Machado de Assis (foto), em 2 de novembro de 1882. A carta em que Machado comenta a política brasileira se perdeu |
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• Trecho: Correspondência de Machado de Assis |
Ao publicar seu primeiro livro de versos, o advogado Antônio Gonçalves Crespo, brasileiro radicado em Portugal (e filho de um português com uma mulata), decidiu pedir acolhida crítica a um escritor de algum renome em seu país natal – Machado de Assis (1839-1908). Escreveu-lhe uma carta, em 1871: "A Vossa Excelência, já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era... de cor como eu". A carta de Crespo está coligida emCorrespondência de Machado de Assis – Tomo II – 1870-1889, (514 páginas; 40 reais), recém-lançado pela Academia Brasileira de Letras. Se houve resposta a Crespo, a carta se perdeu. Sabe-se, porém, que Machado não apreciava muito as referências à sua cor de pele. Muito bem circunstanciado pelas notas dos organizadores – o diplomata e embaixador Sergio Paulo Rouanet, coordenador-geral da edição, e as pesquisadoras Irene Moutinho e Sílvia Eleutério –, o segundo tomo da correspondência completa está cheio desses silêncios. As cartas documentam a transformação de Machado de Assis em esfinge: o funcionário público discreto que escreveu os livros mais estranhos e inovadores da literatura brasileira de seu tempo.
Machado era, sem dúvida, um crítico sensível e acurado, como se nota pela carta-prefácio elogiosa mas repleta de reparos que escreveu para um livro do poeta Lúcio de Mendonça. Ocasionalmente, sabia ser arrasador, como na crítica que fez em 1878 a O Primo Basílio, de Eça de Queiroz (Eça, aliás, respondeu com uma carta elegantíssima). Mas Machado também se mostrava cuidadoso ao tratar de certos consensos nacionais. Em uma longa e rebarbativa carta aberta publicada no Jornal do Comércio em 1871, o desenhista e naturalista Ladislau Neto derrama-se em elogios para A Batalha do Campo Grande, quadro patrioteiro de Pedro Américo sobre um episódio da Guerra do Paraguai, e convoca Machado a externar sua opinião sobre a mesma obra. A resposta veio cautelosa e protocolar. A reticência de Machado não permite saber quanto ele de fato apreciou a pintura: "Se há neste quadro defeitos e incorreções, não sei. (...) Não sou crítico de arte".
O novo tomo da correspondência cobre um período crucial para o desenvolvimento do escritor. Ressurreição, seu primeiro romance, sai em 1872, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, seu grande salto artístico, em 1881. Os correspondentes do autor manifestam sua opinião sobre essas obras – às vezes, com sincero pasmo. "O que é Brás Cubas em última análise? Romance? Dissertação moral? Desfastio humorístico?", pergunta o historiador Capistrano de Abreu. Mas não se encontram, nas cartas do próprio Machado, os comentários sobre a composição literária e a angústia criativa que foram comuns, por exemplo, na correspondência do francês Gustave Flaubert quando este escrevia Madame Bovary. "Machado era um caramujo, sempre reservado sobre o que estava escrevendo", diz Rouanet. Apenas um correspondente parece ter tido o privilégio de saber dos trabalhos em curso do escritor – seu cunhado Miguel de Novais, que morava em Portugal, pergunta, em uma carta de 1889, sobre dois livros que o autor tinha "na forja" (provavelmente o romance Quincas Borba e a coletânea de contos Várias Histórias). Novais também faz referência a opiniões francas de Machado sobre a patifaria na política – brasileira e portuguesa. Perderam-se as cartas que Machado mandou para Novais. O tempo colaborou para preservar seu caráter de esfinge.
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