André Petry, de Nova York
Jason Eeed/AP |
PRIMEIRO, OS CONCEITOS Obama, em discurso na sessão conjunta do Congresso, em Washington: o que quer dizer mesmo "justiça social"? |
O discurso foi excelente. Direto, sem ser raso. Técnico, sem ser chato. Sensível, sem ser piegas. No horário nobre da quarta-feira passada, o presidente Barack Obama falou durante 47 minutos em sessão conjunta do Congresso com o objetivo de virar o jogo a favor de sua proposta de reforma do sistema de saúde. Depois de promovê-la a prioridade número 1 de sua agenda doméstica, e vê-la ser estraçalhada nas inúmeras reuniões que deputados e senadores fizeram com eleitores no recesso parlamentar de agosto, Obama está sendo convidado a descer do palanque para ser apresentado à realidade. E a realidade é o avesso de sua utopia: a maioria, exatamente 51% na última pesquisa, é contra a reforma da saúde. Traduzindo: os americanos não querem um sistema público de saúde para competir com as empresas privadas e não gostam da ideia de o governo administrar o sistema atual para evitar abusos das seguradoras. Por trás disso, há uma mensagem cujas raízes remontam à história do país: a maioria dos americanos desconfia da honestidade, dos propósitos e da competência do governo – qualquer governo.
Na superfície, o debate sobre a saúde nos Estados Unidos provoca divergências técnicas. Na proposta de Obama, todos os americanos serão obrigados a ter plano de saúde. Mas qual o leque mínimo de benefícios? Obama promete que o governo vai subsidiar quem não puder comprar um plano. Mas de quanto será o subsídio? Obama disse, pela primeira vez, que o custo da reforma em dez anos será, no máximo, de 900 bilhões de dólares e o grosso do dinheiro virá da redução do desperdício e das fraudes. Mas de onde saiu o cálculo do que escorre pelo ralo do desperdício e das fraudes? Encerrado o discurso de Obama, a atenção da imprensa e dos políticos foi concentrada nessas dúvidas. Cálculos políticos foram refeitos. Especula-se se esta ou aquela proposta mencionada por Obama será capaz de capturar o voto de algum republicano ou recuperar o voto dos Blue Dogs, apelido dado à meia centena de democratas menos liberais que se opõe à reforma. No fundo, porém, debaixo das tecnicalidades, a questão central e mais divisiva é sobre tamanho e papel do estado.
Os países muçulmanos inventaram a noção de caridade estatal. Os europeus criaram o moderno estado do bem-estar social, com generosa aposentadoria e serviço de saúde universal. Os latino-americanos, mesmo historicamente sufocados por estados gordos e ineficientes, deslumbram-se com a ideia de proteção estatal do berço ao túmulo. Nos Estados Unidos, não. É o contrário. Até serviços sociais relevantes os americanos preferem que sejam prestados por voluntários ou entidades sem fins lucrativos, não pelo estado. Com sutileza talvez exagerada, pois a repercussão foi mínima, Obama tocou nesse ponto crucial. Declarou que saúde para todos, incorporando os 40 milhões de americanos que não têm cobertura, é uma questão de "justiça social", expressão elegante mas vaga no vocabulário político americano. Disse que seus antecessores compreenderam que a ação governamental pode trazer "ganhos em segurança" que não compensam as "perdas em liberdade" e, em seguida, contrapôs afirmando que os antecessores também entenderam que existe "tanto perigo no excesso quanto na escassez de governo" e que, na ausência de políticas públicas inteligentes, "os vulneráveis podem ser explorados".
Pode ser que o discurso de Obama vire o jogo a favor da reforma. Até agora, não conquistou um único voto republicano, mas talvez tenha reunificado os democratas. Em sua aparição no Congresso, Obama manteve a ideia de um sistema público de saúde, mas se disse aberto a alternativas. Na prática, equivale a desistir da chamada "opção pública". Isso desagrada aos liberais, mas é um aceno aos conservadores de cujos votos a Casa Branca precisa. E, de novo, é o nervo exposto – o estado. Na campanha contra a reforma, os comerciais de TV mostram que, com o sistema público, o governo se colocará entre o paciente e o médico, dizendo que tipo de tratamento será ou não coberto. É demagogia, pois os planos de saúde privados fazem a mesma coisa ao definir ou cortar benefícios. Mas funciona, e bem. Pesquisa da Kaiser Family Foundation, que se dedica aos assuntos de saúde, mostra que, se alguém tem de se meter na relação médico-paciente, 48% dos americanos preferem que seja uma empresa privada. Só 38% concedem o privilégio ao governo.