A BOSSA OBSCURA
As comemorações dos cinqüenta anos da bossa
nova renderam exposições, shows e um filme – Os
Desafinados. Mas o gênero ainda guarda segredos
Sérgio Martins
Divulgação |
Paes Leme, Rodrigo Santoro, André Moraes e Jair de Oliveira: bossa-novistas que não conseguiram realizar o sonho de fama e fortuna |
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Em cartaz nos cinemas desde sexta-feira,Os Desafinados (Brasil, 2008) narra a trajetória de Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo Paes Leme), Geraldo (Jair de Oliveira) e PC (André Moraes), músicos que em 1962, período de maior ebulição da bossa nova, vão para Nova York em busca de fama e fortuna. O filme deixa claro que o quarteto jamais conseguiu realizar esse sonho – e o personagem Joaquim é inspirado no pianista Tenório Jr., que, durante uma excursão por Buenos Aires, nos anos 70, saiu para comprar cigarros e desapareceu, seqüestrado por oficiais do Exército argentino. Os Desafinados faz parte do festival de comemorações em torno do cinqüentenário da bossa nova, que neste ano ganhou duas exposições em São Paulo, shows de João Donato, João Gilberto e da dupla formada por Caetano Veloso e Roberto Carlos (numa homenagem a Tom Jobim) e relançamentos em CD. Filme desigual, que alterna passagens enfadonhas com outras bem costuradas, ele tem o mérito de relembrar que a bossa nova não se limitou a João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes: houve diversos Joaquins, Davis, PCs e Geraldos, muitos merecedores de reconhecimento.
Existem "desafinados" de dois tipos. Houve aqueles que influenciaram os nomes centrais da bossa nova, mas por motivos diversos ficaram de fora do panteão. Tito Madi, intérprete de canto suave, era um dos prediletos de João Gilberto e Roberto Carlos. O mesmo se pode dizer de Marisa Gata Mansa, ex-namorada de Gilberto e uma das primeiras a gravar suas composições. Em vez de adotar o rótulo "bossa nova", eles preferiram se definir como artistas de samba-canção. Madi ainda rompeu com João Gilberto, depois de receber uma violonada na cabeça, durante uma discussão. Sylvia Telles, por seu turno, foi a primeira cantora a gravar uma canção de Carlos Lyra – Menino, em 1955 – e a primeira a gravar uma parceria de Tom Jobim com Newton Mendonça (Foi a Noite, de 1956, tida como um dos marcos da bossa nova). Sylvia morreu num acidente de carro em 1966. Outros ficaram de fora por um capricho geográfico. Johnny Alf era reverenciado pelos músicos cariocas quando se apresentava na boate Plaza, em meados da década de 50. Canções como Rapaz de Bem anteciparam o que viria a ser a bossa nova – um estilo musical elegante, calcado no cool jazz americano, com vocais sussurrantes no lugar do estilo "estoura-peito" dos cantores de bolero e de samba-canção que apinhavam as rádios brasileiras. Anos depois, quando a bossa nova finalmente ganhou os holofotes, Alf morava e tocava em São Paulo – e desfrutou muito pouco a popularidade colossal alcançada pelo gênero. "É uma pena, porque suas harmonias são tão ricas quanto as de Tom Jobim", diz Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio, um dos principais grupos de samba-jazz (outra vertente da bossa).
Outra categoria de "desafinado" é formada por bossa-novistas que lançaram discos significativos, mas que foram ofuscados pela tríade formada por Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto. Fazem parte dessa turma compositores do quilate de Carlos Lyra e Roberto Menescal e instrumentistas que ultrapassaram os limites da bossa nova – caso de João Donato e Marcos Valle. Lyra foi parceiro de Tom Jobim, de Vinicius de Moraes e de Ronaldo Bôscoli. Em 1961, passou a cobrar letras politicamente engajadas da turma da bossa nova e flertou com os sambistas dos morros cariocas. Passou ainda temporadas longe do país – primeiro no México, depois nos Estados Unidos – e hoje em dia goza de um prestígio infinitamente inferior ao seu talento. O pecado de Donato e Valle foi combinar a batida da bossa nova com outros gêneros musicais, como o funk. Essa ousadia lhes rendeu narizes torcidos entre os críticos da época e fez com que ficassem à margem do "cânone" (ainda que hoje sejam bastante reverenciados por DJs e produtores do exterior).
A bossa nova foi uma das últimas revoluções da música brasileira. "Ela abriu as portas para a MPB atual", diz o pesquisador Jairo Severiano. É também um dos gêneros musicais mais copiados em todo o mundo: astros da música pop internacional tentaram, em vão, copiar sua batida, DJs cruzaram o violão e o batuque da bossa com ritmos eletrônicos (o popular drum’n’bossa) e surgiram projetos de gosto duvidoso, como versões bossa para sucessos dos Beatles, dos Rolling Stones e até dos Ramones. A bossa virou fórmula e ganhou um rótulo de "música para relaxar". Daí o interesse de redescobrir os "desafinados" para o grande público e ampliar a história do gênero para além do que já virou clichê.
OS ESQUECIDOS Quem ficou de fora do panteão da bossa nova
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