FOLHA DE SP - 04/12/11
De alguns anos para cá, passou-se a falar em literatura negra brasileira para definir uma literatura escrita por negros ou mulatos. Tenho dúvidas da pertinência de uma tal designação. E me lembrei de que, no campo das artes plásticas, em começos do século 20, falava-se de escultura negra mas, creio eu, de maneira apropriada.
Naquele momento, a arte europeia questionava o caráter imitativo da linguagem plástica e descobria que as formas têm expressão autônoma, independentemente do que representem, ou seja, não é necessário que uma escultura imite um corpo de mulher para ter expressão estética, para ser arte.
As esculturas africanas, trazidas para a Europa pelos antropólogos, eram tão "modernas" quanto as dos artistas europeus de vanguarda, já que fugiam a qualquer imitação anatômica. Foram chamadas de arte negra não apenas porque as pessoas que a faziam eram da raça negra e, sim, porque constituíam uma expressão própria a sua cultura.
Não é o caso da literatura. A contribuição do negro à cultura brasileira é inestimável, a tal ponto que falar-se de contribuição é pouco, uma vez que ela é constitutiva dessa cultura.
O Brasil não seria o país que o mundo conhece - e que nós amamos - sem a música que tem, sem a dança que tem, criada em grande parte pelos negros.
Ninguém hoje pode imaginar este País sem os desfiles de escolas de samba, sem a dança de suas passistas, o ritmo de sua bateria, a beleza e euforia que fascinam o mundo inteiro.
Uma parte dessas manifestações artísticas é também dos brancos mas constituem, no seu conjunto, uma expressão nova no mundo, nascida da fusão dos muitos elementos de nossa civilização mestiça.
Certamente, os estudiosos reconhecem que, sem o negro e sua criatividade, seu modo próprio de encarar a vida e mudá-la em festa e beleza, não seríamos quem somos. Mas teria sentido, agora, pretender separar, no samba, na dança, no carnaval, o que é negro do que não é? E já imaginou se, diante disso, surgissem outros para definir, em nosso samba, o que é branco e o que é negro?
E, em função disso, se iniciasse uma disputa para saber quem mais contribuiu, se Pixinguinha ou Tom Jobim, se Ataulfo Alves ou Noel Rosa, se Cartola ou Chico Buarque?
Felizmente, isso não vai acontecer, mesmo porque, nesse terreno, ninguém se preocupa em distinguir música negra de música branca. O que há é música brasileira.
Mas, infelizmente, na literatura, essa descriminação começa a surgir. Não acredito que vá muito longe, uma vez que é destituída de fundamento mas, de qualquer maneira, contribuirá para criar confusão.
Falar-se de literatura brasileira negra não tem cabimento. Os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, já que essa manifestação não fazia parte de sua cultura.
Consequentemente, foi aqui que tomaram conhecimento dela e, com os anos, passaram a cultivá-la.
Se é verdade que, nas condições daquele Brasil atrasado de então, a vasta maioria dos escravos nem sequer aprendia a ler - e não só eles, como também quase o povo todo - com o passar dos séculos e as mudanças na sociedade brasileira, alguns de seus descendentes, não apenas aprenderam a ler, como se tornaram grandes escritores, tal é o caso de Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto, para ficarmos nos mais célebres.
Cruz e Souza era negro; Machado de Assis, mulato, mas tanto um quanto outro, foram herdeiros de tendências literárias europeias, fazendo delas veículo de seu modo particular de sentir e expressar a vida. Não se pode, portanto, afirmar que faziam "literatura negra" por terem negra ou parda a cor da pele.
Pode ser que os que falam em literatura negra pretendam valorizar a contribuição do negro à literatura brasileira. A intenção é boa mas causa estranheza, já que o Brasil inteiro reconhece Machado de Assis como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Pelé como um gênio do futebol e Pixinguinha, um gênio da música.
Contra toda a evidência, afirmam que só quando se formar no Brasil um grande público afrodescendente, os escritores negros serão reconhecidos, como se só quem é negro tem isenção para gostar de literatura escrita por negros. Dizer isso ou é tolice ou má-fé.