Primaveras ou invernos? - JOÃO PEREIRA COUTINHO
Política

Primaveras ou invernos? - JOÃO PEREIRA COUTINHO




FOLHA DE SP - 18/09

O fato de derrubarmos um ditador não significa necessariamente que as alternativas serão melhores

UM FILME amador sobre a vida do profeta Maomé incendiou a sempre pacífica "rua árabe". O embaixador americano na Líbia foi morto. Embaixadas americanas no Oriente Médio foram atacadas. E até lanchonetes da Kentucky Fried Chicken tiveram a sua dose de violência e destruição.

Confesso: eu já almocei na KFC. Também tive vontade de a destruir depois de provar o menu da casa. Mas será que a qualidade do produto merece um ato tresloucado?

Escutei Barack Obama. Escutei Hillary Clinton. Escutei o secretário-geral da ONU, um nome impronunciável que não vou checar. Escutei toda gente que é gente e a sentença, sem surpresa, é a mesma: o filme é nojento, ofensivo, ignorante; mas nada disso justifica a violência que ele provocou.

Concordo com a segunda parte. Só não concordo com a primeira porque não sabia que Obama, Clinton, Ban Ki-moon (sim, chequei) e "tutti quanti" eram críticos de cinema.

É indiferente saber se o filme é bom ou mau, nojento ou refinado, ofensivo ou altamente elogioso para o islã. Não é função de nenhum chefe político tecer comentários sobre a qualidade do que se diz, faz ou pensa em países ocidentais, onde a liberdade de expressão é um valor sacramental.

E a liberdade de expressão comporta tudo: o repelente, o ofensivo, o ignorante, o sacrílego. Se existem fanáticos que não gostam desse modo de vida, o problema não é do Ocidente. O problema é dos fanáticos.

Claro que, para além da violência superficial que se espalhou pelo Oriente Médio, existem questões mais perversas: e se os atos dos fanáticos não estiverem apenas relacionados com o filme?

E se o ódio ao Ocidente for a verdadeira gasolina que faz arder esses atos? E se a Primavera Árabe, afinal, foi apenas uma forma de trocar velhos tiranos por novos?

A mídia ocidental, que cavalgou romanticamente a Primavera Árabe, recua de horror ante a possibilidade. Na Líbia do detestável Gaddafi, no Egito do detestável Mubarak, ou na Tunísia do detestável Ben Ali, só podem florescer democracias civilizadas, respeitadoras dos direitos humanos e onde a liberdade individual não tem preço.

Eis a suprema falácia do pensamento progressista, que o filósofo John Gray, em artigo recente para a BBC, destruiu sem piedade: o fato de derrubarmos um ditador não significa necessariamente que as alternativas serão melhores. E por quê?

Aqui, Gray faz o que melhor sabe: mamar forte no pensamento do seu pai espiritual, o historiador das ideias Isaiah Berlin (1909 - 1997).

No ensaio clássico "Dois Conceitos de Liberdade", que pode ser lido no livro "Estudos sobre a Humanidade" (Companhia das Letras), Berlin já tinha avisado que os valores mais importantes em política não podem ser confundidos uns com os outros.

Liberdade é liberdade, não é igualdade. Igualdade é igualdade, não é liberdade. Democracia é democracia, não é justiça.

Por outras palavras: o voto da maioria pode ser uma condição para a existência de regimes livres.

Mas pode também ser o contrário: uma forma de liquidar a liberdade individual. Basta que a maioria, por exemplo, opte por um regime baseado na sharia islâmica, e não pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E essa perversão nem sequer é uma exclusividade do islã. Será preciso recordar que Adolf Hitler é o exemplo mais eloquente de alguém que usou a democracia para liquidar a democracia?

Hoje, no mundo islâmico, sabemos que ditaduras criminosas foram derrubadas. Mas também sabemos que islamitas tomaram o poder no Egito ou na Tunísia. E que várias facções, com vários graus de radicalismo fundamentalista, lutam pelo poder dentro de cada um desses países.

O que não sabemos nem escutamos são vozes liberais dentro do Egito ou da Tunísia defendendo regimes democráticos respeitadores dos direitos humanos e da liberdade individual.

Na década de 1960, perguntaram ao premiê chinês Zhou Enlai o que ele pensava sobre a Revolução Francesa de 1789. Resposta: "Ainda é muito cedo para dizer".

Faço minhas as palavras dele sobre as primaveras que podem virar invernos.



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