O ESTADO DE S. PAULO - 16/10/11
Durante a crise de 2008 e até fins de 2009, o governo chinês manteve sua moeda, o yuan, relativamente estável diante do dólar, apesar de seu imenso superávit em contas correntes e de uma acumulação de reservas internacionais que atualmente excede US$ 3,2 trilhões. Essa estratégia cambial intervencionista vem sendo fortemente questionada no mercado internacional, mesmo que de forma discreta, seja diretamente por certos países como os Estados Unidos e o Brasil, seja pelo conjunto de países integrantes do Grupo dos 20 (G-20).
Afinal, a recusa da China em permitir uma flutuação de sua moeda conspira não só contra seu reconhecimento como economia de mercado, mas também contra o ajuste da economia mundial nesta conjuntura de crise monetária e fiscal dos países desenvolvidos. E põe em risco milhares de indústrias e milhões de empregos ao redor do mundo, vítimas de concorrência desleal por parte das exportações chinesas, subsidiadas por um câmbio artificialmente desvalorizado.
Nos últimos 12 meses se observa, no entanto, uma mudança na estratégia cambial do governo chinês, como poderemos ver, mais em razão de seus próprios interesses do que como resposta às críticas de terceiros países ou de instituições multilaterais.
O fato é que o yuan se valorizou 6% em relação ao dólar desde julho de 2010 para cá. Essa valorização da moeda chinesa provoca, vis-à-vis os Estados Unidos, uma redução da competitividade de suas exportações e, de outro lado, aumenta suas importações.
Certamente, essa medida não agrada aos produtores chineses nem concorre com o objetivo prioritário das autoridades do governo central em Beijing de criar cerca de 25 milhões de empregos por ano, de forma a absorver novos jovens entrantes no mercado de trabalho e a maciça migração rural para os grandes centros urbanos e industriais.
Então por que estariam as autoridades chinesas dispostas a permitir, como parece, uma valorização mais rápida do yuan em relação ao dólar do que a ocorrida durante os anos passados?
Vários motivos podem em parte explicar essa nova postura cambial da China.
Em primeiro lugar, a preocupação com seu trilionário portfólio de títulos estrangeiros denominados principalmente em dólar e em euro, no momento em que aumenta no horizonte o risco de uma forte desvalorização em ambas as moedas e de consequente inflação nos Estados Unidos e na Europa. Quanto maior o superávit comercial da China, maior a sua acumulação de reservas externas e maior a sua exposição ao risco de títulos soberanos em outras moedas com relativo valor declinante. Isso gera uma perda implícita de poder de compra de suas reservas externas, o que, sem dúvida, aflige hoje em dia as autoridades chinesas.
Outro fato que deve estar pesando na decisão cambial chinesa é a inflação crescente em seu mercado doméstico. Caso a valorização do yuan prossiga adiante, se reduzirá gradualmente o custo de produtos importados para empresas e consumidores chineses.
Note-se que a China importa anualmente cerca de US$ 1,4 trilhão, ou seja, aproximadamente 25% de seu Produto Interno Bruto (PIB), o que torna este efeito cambial mais relevante no controle da inflação.
Cabe destacar que não podemos circunscrever a observação de paridade cambial do yuan apenas com o dólar norte-americano, especialmente tendo em vista o fato de que desde 2009 o dólar se desvalorizou em relação a quase todas as moedas importantes do mundo. Em relação ao euro, por exemplo, a moeda norte-americana declinou cerca de 10% nos últimos 12 meses, o que implica que o yuan se tornou 4% mais desvalorizado em relação ao euro no mesmo período.
As moedas do Brasil, Canadá, África do Sul, Suíça, Austrália, entre outras, todas apresentaram forte valorização em relação ao yuan nos últimos anos. Ou seja, o movimento do yuan chinês não foi suficientemente forte para anular ou nem sequer reduzir sua artificial desvalorização em relação às principais moedas mundiais. Seria de esperar que, diante deste cenário, as autoridades chinesas permitissem uma valorização mais acentuada do yuan não só em relação ao dólar, mas também em relação às outras moedas mundiais, inclusive o nosso agravado real.
Ocorre que essa consciência de buscar um melhor equilíbrio cambial e competitivo entre as nações está longe de ser um consenso mundial, e muito menos dentro da própria China. Daí se verifica que, às vésperas de uma nova reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do G-20, se agrava a chamada guerra cambial.
A conservadora Suíça impõe uma nova política de bandas cambiais; os Estados Unidos ameaçam novas rodadas de emissão de moeda (QE3) que devem ser seguidas pela União Europeia às voltas com o inexorável calote da dívida da Grécia; e aqui, no Brasil, o governo federal vê-se praticamente obrigado a aplicar medidas de intervenção no mercado futuro de câmbio.
Quanto à China, suspeita-se cada vez mais da atuação direta de seu banco central, por meio de hedge funds internacionais, nos mercados derivativos aqui, no Brasil, e em outros países-alvos, com o objetivo de valorizar relativamente as suas moedas, tornando mais competitivos os produtos chineses nos seus respectivos mercados e a valorização gradual do yuan diante do dólar, menos gravosa nos demais mercados ao redor do mundo.
Essa é a face mais escandalosa e absurda da guerra cambial, fruto da excessiva desregulamentação e da falta de controles dos mercados de derivativos, que veio a permitir que alguns países possam especular sorrateiramente contra a moeda dos outros, camuflados atrás de renomados bancos internacionais, e com intenções não de lucro especulativo, como faria um especulador privado, mas de manipulação do valor das moedas de forma a favorecer seus exportadores para aquele específico mercado importador.
Enquanto isso, o FMI e a Organização Mundial do Comércio (OMC) permanecem ineficazes e omissos diante dessa anarquia cambial a que assistimos com crescente preocupação.
Nesta guerra cambial ainda vão acontecer muitas atitudes desleais e agressivas contra o real, e não podemos ficar ingenuamente indefesos a esses ataques especulativos, quanto mais sabendo que eles estão sendo promovidos intencionalmente por outros países ditos "parceiros".