"A favela em que alguém cresceu não tem menor valor, em sua memória afetiva, do que o palácio em que cresceu o príncipe. Em desespero, corre-se para lá"
O jogador Adriano, da seleção brasileira e do Internazionale de Milão, primeiro se notabilizou pelos gols. Aos gols minguantes sucederam farras crescentes. As farras transformaram-no em pivô de escândalos. Nos últimos dias virou, aos 27 anos, personagem de drama. Para quem não acompanhou a história, Adriano, depois do último jogo da seleção, em vez de voltar para a Itália, sumiu. Correu até que teria sido baleado. Ao reaparecer, deu uma entrevista que continha dois pontos fundamentais. O primeiro foi o bombástico anúncio de que iria parar, pelo menos temporariamente, de jogar futebol. "Perdi a alegria de jogar", disse. O segundo, a informação de que passara os dias de sumiço na favela Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu. Ficou-se sabendo que com frequência ele se refugia na favela. "Estou sempre aqui", diz, num vídeo feito por holandeses na Vila Cruzeiro. "Amo minha favela." Ambos os pontos conduzem a questões mais amplas.
A primeira tem a ver com o futebol mesmo. Não há caso similar, até onde a vista alcança, de jogador que, ainda com anos de carreira pela frente e ganhando uma fortuna, tenha decidido abandonar tudo. Jogador que perde a alegria de jogar é triste como palhaço que não vê mais sentido em fazer graça, artista plástico que não mais se encanta pelas cores ou filósofo para quem especular vira uma chatice. Adriano é um caso especial. Ele hoje nega, mas já admitiu problemas com alcoolismo. Talvez sofra de depressão. Mesmo assim, seu caso é emblemático. Ele sumariza o novo "trato dos viventes", para usar o título do livro do historiador Luiz Felipe de Alencastro sobre o comércio de escravos no Brasil, em que se transformou a indústria do futebol.
Não; não se pode comparar a situação do escravo transplantado da África para uma vida de sofrimento no Brasil com a do jogador exportado para uma vida de riqueza no exterior. Exceto por três fatores – um, que se trata igualmente de comércio em que a mercadoria são pessoas; dois, que na maior parte das vezes envolve gente de pele escura; e três, que para essa gente/mercadoria o lado de lá da linha significa o desterro. Adriano transferiu-se para a Itália aos 19 anos. Foi disparado, sem escala para aclimatação, da Vila Cruzeiro a Milão. À penúria da favela seguiu-se a era das mansões, das mulheres e dos carrões. O preço a pagar foi o de ter desembarcado num mundo de língua, hábitos e referências novas – tanto mais atordoantes para quem tem formação deficiente e estrutura psicológica frágil. Seu caso chama atenção para o lado obscuro do sucesso dos artistas da bola.
A segunda questão suscitada pela entrevista de Adriano, sobre seu refúgio na Vila Cruzeiro, serve como involuntária contribuição a um debate hoje na ordem do dia no Rio – o da expansão das favelas. O governo estadual projeta construir muros para proteger áreas verdes do avanço das construções. A moda do muro, que viceja da Cisjordânia à fronteira EUA-México, chega ao morro carioca como símbolo de uma rendição: desiste-se da urbanização, da fiscalização e outras providências que exigem seriedade de propósitos e continuidade administrativa em favor de um golpe de tijolo e cal. A contribuição de Adriano ao debate é apontar uma razão pouco citada para a expansão das favelas: o fato de muita gente gostar de morar nelas. De o apego à favela, numa multidão de brasileiros, ser um traço cultural.
Aos que só observam a favela de longe, como a um planeta distante, parece inconcebível que alguém possa preferir a Vila Cruzeiro a Milão. Adriano, que estaria construindo uma casa na favela, é a mais ilustre evidência em contrário. Ele é fruto daquele ambiente meio aldeia e meio cidade, meio roça e meio bairro de subúrbio, em que o costume é morar todo mundo grudado, partilhar fortemente sua vida, andar pelas vielas de chinelos e bermudas, aceitar o convívio com o tráfico como no asfalto se aceita conviver com o delinquente de colarinho-branco – e não troca isso "por nada e por ninguém", como diz no filme dos holandeses. Os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos, escreveu Marcel Proust. O paraíso que Adriano perdeu, ao se lançar mundo afora, é a Vila Cruzeiro. A favela em que alguém cresceu não tem menor valor, em sua memória afetiva, do que o palácio em que cresceu o príncipe. É o lugar em que sentiu os primeiros cheiros e ouviu os primeiros sons. Na hora em que a mente se perturba, corre-se para lá, na busca de segurança e de aconchego, como quem corre, em desespero, em busca da pátria.