O Estado de S. Paulo - 26/04/2012 |
sociólogo, doutor em Geografia Humana pela USP "Imagine a França, durante uma crise, sendo liderada pelo triunvirato Mélenchon-Joly-Hollande", bradou o presidente Nicolas Sarkozy, referindo-se às indicações de voto de Jean-Luc Mélenchon, da Frente de Esquerda, e de Eva Joly, dos Verdes, em favor de François Hollande, o desafiante do Partido Socialista. A visão, talvez perturbadora, nem se aproxima, porém, da perspectiva de uma França na qual a direção da oposição se transferirá para a Frente Nacional de Marine Le Pen. Entretanto, esse é um desenlace provável do ciclo eleitoral em curso, que abrange o segundo turno da disputa presidencial e as eleições parlamentares de junho. A responsabilidade cabe a Sarkozy - e à crise do euro. Na sua campanha triunfante de 2007 o presidente aprendeu um truque político simples, que só demanda o desprezo pelos princípios sobre os quais se sustenta a democracia francesa. A artimanha consiste em reproduzir, um tom abaixo, o hino ultranacionalista da Frente Nacional, cantando as glórias da "França católica", articulando as noções de "identidade nacional" e "singularidade francesa", costurando sentenças trançadas em torno dos termos "imigrantes", "segurança" e "terrorismo". A operação funcionou cinco anos atrás, transferindo-lhe eleitores seduzidos pela extrema direita. Repetida nos últimos meses com alarido ainda maior, revelou-se inútil: Le Pen obteve 18% dos votos, superando o recorde histórico de seu pai, Jean-Marie, alcançado em 2002. A Frente Nacional concentrou sua campanha na promessa de ruptura com o euro e com a União Europeia, relegando a xenofobia a patamar secundário. Pela primeira vez na História da Quinta República Francesa o presidente que busca a reeleição viu escapar a dianteira no turno inicial. Sob o impacto da crise do euro, o posto ficou com Hollande, que recebeu 28,6% dos votos, ante os 27,2% de Sarkozy. A diferença parece insignificante, ainda mais quando se compara o desempenho de Mélenchon com o de Le Pen: a Frente de Esquerda obteve 11% dos sufrágios, muito longe do que indicavam as pesquisas - e de sua meta de superar a extrema direita, recuperando o antigo eleitorado comunista. No domingo os estrategistas presidenciais adicionaram os votos de Le Pen aos de Sarkozy, chegando à soma de 45%, maior que o total do "triunvirato" da esquerda, de 42%. Segundo a aritmética, tudo dependeria do comportamento dos 9% de eleitores do candidato centrista François Bayrou. Política, contudo, não é aritmética. O primeiro turno sugere somas mais pertinentes. A Frente Nacional e a Frente de Esquerda, linhas paralelas extremas da política francesa, encontram-se no pátio da rejeição à União Europeia (a "Europa libertina" de Le Pen, que é a "Europa neoliberal" de Mélenchon). Somados, Le Pen e Mélenchon representam 29% dos eleitores, mais que Hollande ou Sarkozy. A adição é eleitoralmente irrelevante, mas evidencia as dimensões da crise política emanada do tufão que se abate sobre a zona do euro. A soma dos sufrágios do "triunvirato" da esquerda também tem sentido, pois Mélenchon e Joly indicaram o voto em Hollande. A missão do candidato social-democrata no segundo turno não é trivial: para atrair os eleitores da Frente de Esquerda, que rejeitam a "Europa neoliberal", ele se inclinará um pouco à esquerda, desenhando no ar a quimera de uma reforma da União Europeia. Na hipótese provável de sucesso, enfrentará como presidente o dilema insolúvel de se equilibrar entre os imperativos categóricos da Alemanha de Angela Merkel e as doces promessas que vendeu aos franceses. A soma dos sufrágios de Sarkozy e da Frente Nacional é um exercício contábil impertinente. O partido da extrema direita, grande vitorioso do primeiro turno, consolidou as bases populares e operárias que no passado votavam nos comunistas, mas foram atraídas pelo ultranacionalismo de Jean-Marie após a queda do Muro de Berlim. Marine Le Pen, ao contrário de Mélenchon, classificou como equivalentes os dois rivais do turno final. Sua estratégia, proclamada publicamente, é alçar-se à condição de "chefe da oposição". Nas hostes de Le Pen nenhum dirigente oculta o desejo de assistir à falência política de Sarkozy e à fragmentação da coalizão de centro-direita. Corretamente, Sarkozy interpretou o cenário do primeiro turno como "um voto de crise". Agora, sob o signo da crise, ele está condenado a radicalizar a estratégia que fracassou no turno inicial, caçando os eleitores de Le Pen com o laço da xenofobia. Na democracia, contudo, política é sobretudo linguagem. A renúncia a uma linguagem em nome de outra, estranha às próprias tradições, geralmente tem custos intoleráveis. Os sábios que cercam o presidente começam, tarde demais, a aprender essa lição, bem conhecida pelo ex-presidente Jacques Chirac, antecessor de Sarkozy no comando da centro-direita francesa. Há uma década um desastre eleitoral tirou o socialista Lionel Jospin do segundo turno, provocando um embate direto entre Chirac e Jean-Marie Le Pen. Então Chirac se recusou a debater com o rival e concluiu com o Partido Socialista o acordo tácito do "cordão sanitário", pelo qual ambos rejeitariam alianças eleitorais com a extrema direita. O acerto funcionou: a Frente Nacional jamais conseguiu representação parlamentar e a centro-direita conservou suas credenciais democráticas. Chirac foi o segundo herdeiro político de Charles de Gaulle. A complexa tradição gaullista tem um forte componente nacionalista, mas não combina com os impulsos quase fascistas da Frente Nacional. Sarkozy, o terceiro herdeiro, engajou-se no jogo perigoso da mistura, apropriando-se de elementos fundamentais da linguagem da extrema direita. Tudo indica que pagará o preço dessa opção. Entretanto, a fatura recairá também sobre o sistema político da democracia francesa e, em última análise, sobre as engrenagens fragilizadas da União Europeia. |