A lição da gripe suína O pânico causado pela epidemia se dissipou, mas serviu
Passadas três semanas do anúncio de que a gripe suína poderia se transformar numa pandemia mortal, o pânico que correu o mundo enfim se dissipou. O vírus influenza H1N1, deflagrador da doença, revelou-se bem menos letal do que se previa. Transmitido inicialmente dos porcos para os humanos, ele se espalhou rapidamente por 34 países, contaminou 7 520 pessoas e fez 65 vítimas fatais. No Brasil, no fim da semana passada, havia oito casos confirmados de pacientes com gripe suína, nenhum deles em estado grave. A gripe comum, todo ano, mata 250 000 no planeta. O arrefecimento da doença não significa que se deva baixar a guarda contra ela. Há tempos que os cientistas preveem o surgimento de um vírus devastador, capaz de causar uma grande matança em escala global. É possível que ele venha a ser uma variante do H1N1, ou um vírus totalmente desconhecido. Até hoje a ciência não conseguiu desvendar por completo o comportamento dos vírus, principalmente porque eles têm uma notável capacidade de se modificar ao se replicar. Calcula-se que haja trilhões de vírus na natureza, dos quais apenas 30.000 já foram identificados pelos cientistas. Destes, pelo menos 800 provocam doenças em seres humanos. Com um milésimo do tamanho de uma célula, os vírus – e as enfermidades que eles provocam – são a maior ameaça à humanidade desde tempos imemoriais. A varíola, atribuída a uma praga dos deuses no Egito antigo, dizimou 300 milhões de pessoas ao longo dos séculos até ser erradicada, em 1980. O sarampo, cuja primeira epidemia registrada data do Império Romano, ainda faz 30 milhões de vítimas por ano, 200 000 delas fatais. Desde que foi descoberto, em 1981, o HIV, o vírus da aids, infectou 65 milhões de pessoas. A dengue causa 22 000 mortes anuais. Nos últimos anos, uma das mais espetaculares descobertas no campo da virologia é que os vírus estão por trás de muitas das doenças antes atribuídas apenas ao envelhecimento, aos hábitos e ao estilo de vida. Hoje se sabe que pelo menos 20% dos cânceres – entre eles o cervical, o de fígado e os linfomas – decorrem também da ação direta de vírus. Eles se misturam ao DNA das células, fazendo com que se dividam desordenadamente. Estima-se que, nos anos 70, apenas 1% dos casos de câncer estivesse relacionado a vírus. Disse a VEJA o biólogo Paul Ewald, da Universidade da Louisiana: "Nas últimas quatro décadas, os vírus encontraram novas frentes de propagação usando os seres humanos como hospedeiros. Estudos preveem que, no futuro próximo, os vírus serão responsáveis por 50% de vários tipos de câncer". Viroses foram relacionadas também a males como o diabetes e o Alzheimer.
Entre os microrganismos, as bactérias e os protozoários também podem causar pandemias. Mas os vírus são um desafio especial. Formados por um punhado de material genético envolto por uma cápsula proteica, eles são estruturas difíceis até de definir. Alguns cientistas nem os consideram seres vivos pelo fato de não conterem sequer uma célula. Todos os vírus têm apenas um objetivo: propagar-se. Muitos mecanismos de ação dos vírus já foram desvendados. Como são acelulares, precisam se instalar em células de plantas ou animais para se replicar. Ao entrarem em contato com um organismo, eles alteram as informações genéticas das células, obrigando-as a produzir novas partículas virais. Alguns se multiplicam a ponto de estourar a célula e matá-la. Outros escravizam a célula e se apropriam de todas as suas funções vitais. Parece paradoxal, mas é a simplicidade do vírus que o torna complexo. Os vírus não possuem mecanismos genéticos que garantam um padrão ordenado de características através das gerações. No reino animal, isso equivaleria a uma girafa dar à luz um filhote com as pernas na cabeça. É impossível prever quais vírus surgirão da combinação de seu material genético fragmentado com outros vírus e com o DNA de seus hospedeiros, como o homem. Também não se pode prever que virulência terão as novas cepas. Além de imprevisíveis, os vírus têm uma peculiaridade especialmente predadora. Ao ocuparem uma célula, apropriam-se de tal maneira dela que é muito difícil combatê-los sem prejudicá-la. Por esse motivo, ainda não se conseguiu criar medicamentos antivirais tão eficazes quanto são os antibióticos no combate às bactérias. Para os cientistas, estudar os vírus do ponto de vista evolutivo é o melhor caminho para tentar prever sua ação. Assim como todos os organismos vivos, eles obedecem à teoria da evolução descoberta pelo naturalista Charles Darwin. Sofrem mutações aleatórias e passam por um processo de seleção natural. Os vírus que sobrevivem são os que conseguem se adaptar à dupla missão de se replicar e se transmitir. Cada um tem uma estratégia de sobrevivência. O da varíola, hoje extinto pela vacinação em massa, era o mais letal entre os vírus respiratórios. Como sobreviveu por anos no ambiente, não dependia do hospedeiro para se propagar. Bastava aguardar a oportunidade de infectar um novo hospedeiro. O ebola é tão letal em humanos que mata praticamente todos os que contamina e, por enquanto, só se propaga em animais. O vírus HIV, que causa a aids, transmite-se principalmente pelas relações sexuais. Por isso, adaptou-se para permanecer por muito tempo no organismo. Já o vírus influenza, que provoca a gripe, dura apenas alguns dias no ambiente e, portanto, sua transmissão depende de hospedeiros em condições de se locomover entre pessoas sadias. Dessa maneira, a tendência é a sobrevivência das cepas menos agressivas – mas ninguém pode contar com isso. "Não há garantia de que, no futuro, as cepas mais suaves de influenza sejam as mais aptas a sobreviver", diz o virologista Ricardo Galler, da Fundação Oswaldo Cruz. "O vírus sempre vai evoluir de forma a se tornar mais adaptável ao meio, mudando para o bem ou para o mal", ele completa. Diante disso, a recomendação dos cientistas é continuarmos alertas às manobras traiçoeiras da gripe suína – e de outros vírus.
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Fotos Barry Dowsett/SPL/Latin Stock, Corbis, Latin Stock/RF |