Laurence Bittencourt Leite, jornalista
Shopenhauer foi o sujeito que disse que o mundo, entenda bem, é uma representação do que temos na nossa mente. O mundo é uma representação mental, disse ele. O mundo é aquilo que minha mente vê e crê. Isso dito pela primeira vez, soou tão original quanto a descoberta freudiana de que toda construção humana, material e não material, é uma sublimação de um desejo sexual infantil irrealizado. Mas a idéia de Freud é muito mais profunda.
Por falar nisso, o próprio Freud quando lhe disseram após a sua descoberta da pulsão (que alguns chamam erroneamente de instinto, que pertence ao reino animal) de morte, que sua teoria em muito era uma cópia da teoria de Shopenhauer, ele apenas acrescentou que não tinha recebido nenhuma influência direta porque não tinha lido o alemão o suficiente. Aqui, na frase de Freud, está exposta a teoria da influência do crítico literário americano Harold Bloom, que ele intitulou de angústia da influência. Estou resumindo, claro.
Mas se é possível perceber que Shopenhauer tocou nos nervos da teoria freudiana, assim como o próprio Nietzsche, com a sua Genealogia da Moral, Freud foi mais longe. E por que foi mais longe? Por um pequeno mais decisivo detalhe, qual seja, pela sua coragem moral de seguir avante com uma idéia até o âmago dela.
Claro que não é só isso, certamente, basta citar a originalidade da sexualidade infantil algo inimaginável no inicio do século XX, assim como a descoberta do inconsciente ou do sintoma neurótico. Mas esse espírito desbravador, coisa que ele mesmo reconheceu nele ao dizer a seu amigo Wilhelm Fliess, que o que o distinguia do resto dos mortais, não era ser ele um homem de ciência, nem um observador, nem mesmo um experimentador, nem um pensador, e sim, um conquistador por temperamento, com a curiosidade, ousadia e tenacidade de tal homem.
Freud nunca flertou de perto com a filosofia (ao contrário de Lacan que não só flertou como a usou), porque achava que toda filosofia era um sistema fechado de mundo. Que tendia a cair em um dogma. Se tomarmos como exemplo o mundo como uma representação mental, de Shopenhauer, caímos inevitavelmente nessa idéia onde a possibilidade da contradição está ausente.
A idéia, por exemplo, de um mundo ideal que Marx elaborou a partir da crença linear (algo tomado de empréstimo de Hegel, ainda que depois tenha jogado Hegel para o lado) da vida humana, culminando na ascenção do socialismo é um desses exemplos. É interessante pensar nisso. A própria contradição que Marx viu tão bem nas sociedades antigas, no feudalismo, e principalmente no capitalismo, não percebeu (ainda que humano, demasiado humano) com a chegada em cena do socialismo.
Ao contrário do que Marx pensava, o capitalismo se mostrou extremamente flexível e se adaptou ou se readaptou as inúmeras crises coletivas. Foi essa espécie de plasticidade que Freud percebeu no humano, em especial na libido, ou seja, no desejo humano. Diferente de vê a vida como uma representação mental, Freud achava que se haviam representações mentais, ou o principio do prazer como ele chamou, da mesma forma havia a realidade externa, o principio da realidade, que podia ser diferente da “minha” representação mental. Essa separação entre o Eu e o outro é que promove a mobilidade humana, permite o jogo das diferenças, enquanto a não separação resulta no impasse, na fixidez, no dogma, ou em linguagem política, na não democracia.
Não foi à toa que Nietzsche percebeu que o futuro da humanidade seria a psicologia, percebendo em Dostoievski o primeiro psicólogo moderno. Nietzsche na verdade foi muito mais psicólogo que Dostoievski. Mas ai também seria querer demais para o escritor. Neste sentido, a idéia de pensar como um psicólogo a sua criação não conta, se assim fosse não haveria criação, o que conta é mostrar a dimensão humana em toda sua riqueza e variedade através do ato criativo. Nesse sentido é o escritor que irá romper com os dogmas e os sistemas fechados. A criação literária abre as celas e as cadeias do humano, por onde a política totalitária, por exemplo, fixa para sempre os seus castelos e os seus ideais. Freud continua sendo um grande divisor de águas.