No momento em que universidades tunisianas entraram em greve contra a influência islâmica, após religiosos radicais terem ocupado um campus para pedir a separação entre estudantes homens e mulheres, anuncia-se o adiamento da apuração da eleição no Egito, com informações oficiosas de que a Irmandade Muçulmana teria obtido nas urnas cerca de 45% dos votos, resultado acima do que seus próprios dirigentes previam.
Aqui em Hammamet, cidade a cerca de 40 minutos de Túnis onde se realiza a conferência da Academia da Latinidade sobre “os novos imaginários democráticos” provocados pela Primavera Árabe, dois palestrantes foram além da euforia natural com a abertura democrática na região para fazer advertências importantes.
O ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González destacou que é preciso criar condições para que o país receba investimentos que possibilitem seu desenvolvimento.
Ele se referia especialmente à Constituinte que foi eleita em outubro e tem um ano para aprovar as novas leis do país e convocar eleições presidenciais. González ressaltou que justamente as razões que desencadearam os protestos iniciados na Tunísia devem ser objeto de cuidado dos constituintes, como criação de empregos para a juventude, melhores condições para as mulheres.
A proteção aos direitos dos cidadãos é questão ainda muito sensível, depois de anos de governo ditatorial que expôs a população ao arbítrio de qualquer autoridade, até mesmo o fiscal da esquina, cujos achaques levaram o jovem verdureiro a tocar fogo às roupas, imolação pública que foi o gatilho para a mobilização da maioria silenciosa oprimida. Ele chamou a atenção para o perigo de frustrar os cidadãos que se mobilizaram para a “Revolução de Jasmim” e hoje jogam na futura Constituição suas esperanças de um país melhor.
Felipe González lembrou que quando assumiu a Presidência do governo espanhol, em 1982, na redemocratização, levou exatos 10 anos com investimentos negativos, até que conseguisse convencer os investidores de que o projeto espanhol era estável e tinha futuro.
O ex-primeiro-ministro espanhol chamou a atenção para o fato de que a falta de liderança política é a causa da crise da democracia representativa no mundo atual, pois os governos, em que pese continuam tendo a capacidade administrativa de atuar, não têm capacidade política para implementar seus projetos. Ele se referiu especificamente à incapacidade do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de superar o impasse político que divide republicanos e democratas, paralisando o governo norte-americano.
Já o professor de Ciências Políticas Samir Nair, argelino que exerce funções de conselheiro do governo francês, destacou o perigo de as revoltas nos países árabes se transformarem em movimentos religiosos comandados por partidos islâmicos.
Na Tunísia, assim como no Marrocos e tudo indica no Egito, os partidos islâmicos tiveram a maioria dos votos, mas até o momento o discurso oficial de todos eles é que o governo será laico.
O partido islâmico Ennahda, que lidera a coalizão vencedora das eleições na Tunísia, se espelha, pelo menos nas declarações oficiais, no partido turco do primeiro-ministro Recep Erdogan, que, embora islâmico, lidera um governo laico como condição primordial para a manutenção da democracia.
Samir Nair considera que a “Revolução de Jasmim”, que deu início à Primavera Árabe, tem a responsabilidade do exemplo, pois a revolução tunisiana quebrou “o paradigma mental sobre o qual vivia o mundo árabe”.
Para ele, a Tunísia representava o elo frágil, e o Egito o elo forte do encadeamento dos países árabes antes da Primavera Árabe. Frágil a Tunísia por que o governo ditatorial transformara- se em um governo mafioso, assim como no Egito e na Síria os governos passaram a ser uma “máfia hereditária”.
Ao mesmo tempo, por ser o Estado mais forte do mundo árabe, dos movimentos do Egito dependeria a evolução dos outros países árabes. Quando houve a revolução na Tunísia, raciocina Samir Nair, o povo egípcio viu logo que era possível fazer o mesmo lá, e com maior repercussão.
Por isso ele atribui à Tunísia um papel fundamental nos movimentos que se desenrolam nos países árabes. O professor Nair deixou claro em sua palestra que não foi o islamismo que venceu o que ele classifica de “Estado autoritário degenerescente”: “Foi a totalidade da sociedade que o fez, à base de uma mobilização pacífica não-religiosa”.
Ele ressalta que tanto na Tunísia quanto no Egito, não houve reivindicações que não fossem sobre a cidadania, sem conotação religiosa: dignidade da pessoa (contra a corrupção); direitos do homem (contra a arbitrariedade policial); distribuição de rendas (contra a desigualdade); trabalho (contra o desemprego); democracia (por uma sociedade de méritos e não de privilégios).
Com os partidos islâmicos surgindo como grandes forças eleitorais nos países da Primavera Árabe, o professor Nair pergunta: “A democracia não passa de um meio de as forças islâmicas tomarem o poder para mudar as regras do jogo?”. A alternativa seria essas forças se mostrarem realmente democráticas, aceitando a alternância de poder e também o pluralismo na sociedade civil.
Para ele, a resposta não está nas declarações oficiais ou nas promessas, mas sim nas instituições que resultarem da mudança, “os únicos mecanismos reais de proteção da liberdade”.
Ou bem as instituições são republicanas, baseadas na separação público privada, ou a democracia se tornará sinônimo da hegemonia totalitária de forças religiosas, adverte Samir Nair.