Sobre o riso e a gargalhada
No livro "A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais", Mikhail Bakhtin observa que, a partir do Renascimento e do Iluminismo, a gargalhada espontânea e rude das formas festivas populares — próximas da carne, dos processos fisiológicos e da terra — começa e ser transformada e reprimida. O riso contido diz adeus ao seu estilo escandaloso e "grotesco", ligado à imagem de um corpo imperfeito, aberto, mutável e sujeito à decomposição. Surge um Equador cósmico entre o que fica acima (mãos, cabeça e juízo) e o que está vergonhosamente abaixo da cintura: o traseiro, os órgãos genitais e excretores, e os seus orifícios e funções. O grotesco tem nessa divisão sua origem, pois o interior do corpo e as suas passagens remetem ao obscuro das grutas. A mesa se divorcia da cama...
Na estética do Renascimento, que modelou a arte iluminista e "moderna", o corpo perde os orifícios, abandona seus produtos mais humildes: suas protuberâncias e sua capacidade de confundir-se concretamente (como no parto e no amor carnal) com outro corpo. Ele se individualiza. Para Bakhtin, as grosserias e obscenidades seriam "sobrevivências petrificadas e puramente negativas dessa concepção aberta do corpo". A podridão, os órgãos sexuais e a nudez desabrida caracterizavam as festividades populares, as quais baniam o pecado e o tabu, assim como a separação entre o humano e outros mundos.
A partir do século 18, surge um universo fundado na racionalidade que separa a gargalhada (que vem da garganta) do riso superficial educado. O gargalhar é lapidado e "toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo".
Agora temos o risinho mascarado superior, inaugurado por Voltaire e citado pelos estudiosos entendidos em França que comentaram o recente atentado de Paris. Essa seria a tradição do "Charlie Hebdo" quando, de fato, o terrorismo tem a volúpia dos mártires e — é óbvio — de alguns artistas imbuídos de profetismo, reproduzindo um grotesco rabelaisiano cuja onipotência encara a morte como uma diversão, e não como algo a ser suportado.
O riso irônico dos filósofos franceses separa a luta politica das opções religiosas. Naquela, matava-se com método (usando a guilhotina — uma maquina de matar moderna — igualitária e mecânica); no caso da religião, contudo, tudo se justifica em nome de Deus e do Profeta. A liberdade de dizer o que se quer é deste mundo; matar quem blasfema contra o nosso sagrado é uma guerra e uma vingança porque fala deste mundo e do outro.
A modernidade domesticou o riso que, supomos, pode ser dirigido contra ou a favor de alguma coisa ou alguém. "Certamente, continua Bakhtin, o riso subsiste mas ele se atenua e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo". Eu humildemente diria que, se o riso for além da ironia, ele readquire sua antiga volúpia utópica (e carnavalesca) que regenera e pode levar à morte. Morte física ou morte pela transformadora aceitação do gargalhar.
A essa altura, Bakhtin adverte:
"Haverá no mundo meio mais poderoso para opor-se às adversidades da vida e do destino? O inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta máscara satírica e a própria desgraça recua diante de mim, se me atrevo a ridicularizá-la! E, que diabo, esta Terra, com seu satélite sentimental, a Lua, não merece mais do que burla."
O poder atura tudo, menos a gargalhada reveladora de que até os valores tidos como eternos passam, num mundo que todo dia se acaba um pouco. Em outras palavras, podemos morrer de rir!
O Papa Francisco disse: se xingam minha mãe, eu tenho o direito de dar um soco no ofensor. Alguém me lembrou que, no cristianismo, a grande novidade era voltar a outra face. O direito de ofender é um bem inestimável no liberalismo; o não se sentir ofendido e receber o tapa (ou os tiros) aceitando e amando o ofensor fica para o lado religioso de quem é ofendido. O terrorismo recusa o que chamamos de "ética". Na guerra, que como disse Rousseau no "Contrato Social", só pode ser realizada entre estados nacionais, e não entre indivíduos, há uma declaração. No amor idem. Mas no estupro, na carta anônima, no assalto covarde e no assassinato em nome de Deus, o que perturba é a frieza inesperada que suspende as rotinas e asa mediações que nos tornam civilizados. Como negociar com o terror, cuja força vem exatamente da recusa ao dialogo?
A liberdade não é somente um principio abstrato. Suas manifestações criminosas e lesivas não são fáceis de classificar. Numa guerra, um "comando" elimina um chefe de Estado e todos ganham medalhas de honra. Não se trata de um assassinato, mas de defender a pátria. Num contexto de martírio religioso, no qual a motivação é ganhar a santidade e o paraíso num mundo globalizado, terrivelmente entrelaçado por uma dialética de simultaneidades e de intoleráveis diferenciações, a motivação é ainda mais potente. A menos que se equilibre fé e esperança — esse remédio antiterrorista.
Roberto DaMatta é antropólogo