Teimosia inconstitucional
O Estado de S.Paulo
21 Julho 2014 | 02h 04
Um dia depois de a Câmara dos Deputados aprovar pedido de urgência para a votação do decreto legislativo que revoga o decreto presidencial 8.243, criador do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) e da Política Nacional de Participação Social (PNPS), o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, anunciou a intenção do governo de criar, mediante novo decreto presidencial, um fundo para financiar o funcionamento dos conselhos. A mais nova invenção palaciana tem nome: Fundo Financeiro da Participação Social.
O Palácio do Planalto sabe que o Poder Legislativo é contrário ao SNPS e à PNPS. Gilberto Carvalho afirmou em relação ao decreto legislativo que anula o decreto presidencial 8.243: "Se fosse votado ontem (dia 15/7) teríamos uma fragorosa derrota". Ao invés de respeitar o Legislativo - o que seria a atitude correta de um Poder Executivo que compreende o que significa a separação dos poderes num Estado Democrático de Direito -, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência pediu pressão em cima do Congresso: "Queria deixar para vocês (falava aos representantes do Conselho Nacional de Saúde) o desafio de uma ação, porque o governo sozinho não vai conseguir segurar isso. (...) Fica esse desafio para que vocês pensem em forma de mobilização". Tendo em vista a experiência ditatorial prévia, a Constituição de 1988, no seu art. 85, previu como crime de responsabilidade os atos da Presidência da República que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo. Não seria perda de tempo se o Palácio do Planalto relesse esse artigo da Constituição.
A proposta de criação, por decreto, do Fundo Financeiro da Participação Social também fere a Constituição, pois ela impede que a Presidência da República disponha, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal que implique aumento de despesa. Ora, segundo Gilberto Carvalho, a Presidência da República pretende criar, por decreto, novas despesas para financiar os conselhos populares. Especificou, inclusive, que essas despesas seriam para a compra de passagens e a manutenção de uma infraestrutura dos conselhos populares. "Infraestrutura mínima", pontuou o ministro. Quer seja mínima quer seja máxima, a medida, como anunciada, é claramente inconstitucional.
Mais uma vez fica explícito o desejo do Executivo de controlar os movimentos sociais. Ele criou por decreto o sistema de participação social. Ele instituiu por decreto a política de participação social, que está sob a coordenação da própria Secretaria-Geral da Presidência da República. E agora quer por decreto financiar os movimentos sociais. É o itinerário da domesticação dos movimentos sociais, cujo ponto final é o aparelhamento do Estado.
Cada vez se torna mais evidente, apesar dos contínuos sofismas do Palácio do Planalto, que o lulopetismo pretende criar canais paralelos de poder, não legitimados pelas urnas, com o consequente aparelhamento do Estado, para impor a sua vontade sobre os outros Poderes. Não contentes com o sistema representativo, os inquilinos do Palácio do Planalto querem impor, por decreto, uma "democracia direta".
E isso é apenas o começo, conforme informa a candidata Dilma Rousseff em seu programa de governo para o próximo quadriênio. Ela deixa claro que quer avançar neste sistema, sob a alegação de "que o Brasil precisa sempre de mais, e nunca de menos democracia". Só que a democracia preconizada é aquela que os inquilinos do poder - que dela querem se tornar donos incontestes - podem controlar, domesticar, "aumentar".
Ainda que o Palácio do Planalto pareça não entender, aumentar legitimamente a democracia é - em primeiro lugar - respeitar a Constituição, ato soberano de uma nação, que limita o poder do Estado e do governo e garante a igualdade política de todos os cidadãos. Tudo aquilo que não respeite esse mínimo constitucional é retórica de dominação. E, se os defensores dessa perversa lógica estão investidos de poder, a retórica fica a um passo de se configurar como arbítrio. Não é à toa que o ministro da Secretaria-Geral da Presidência se sente à vontade para falar as maiores barbaridades como se fossem ordinárias medidas de governo.