Política
Tempo perdido Miriam Leitão
O GLOBO - 03/06/10
O Zimbábue que a seleção visitou ontem, e derrotou no jogo amistoso, vive uma longa tragédia.
Nunca vou esquecer o ambiente de esperança dos países que haviam se libertado do colonialismo e dos governos racistas. Era o início dos anos 1980, e a comitiva do Brasil evitou a África do Sul. Foi a Tanzânia, Zâmbia, Angola, Moçambique e Zimbábue.
O roteiro foi desenhado pelo Itamaraty, na política externa independente da época, sob o comando do ministro Ramiro Saraiva Guerreiro, para visitar todos os países que eles chamavam "a linha de frente".
A comitiva, que incluía toda a cúpula do Itamaraty e funcionários de diversos órgãos do governo brasileiro, visitou todos os vizinhos da África do Sul, mas evitou o país do apartheid, regime que o Brasil repudiava.
A política externa fez da viagem um pronunciamento político. O Brasil que havia sido o primeiro a reconhecer o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola, em 1974, que reconheceu o governo da Frente de Libertação de Moçambique, estava lá para dizer que a África com a qual o país queria se relacionar, fazer negócios, e acalentar raízes comuns, era a África que renascia do combate ao racismo e ao colonialismo.
Na Tanzânia, vi o encontro do ministro Guerreiro com o líder da libertação Julius Nyerere; em Moçambique, vi o inusitado, o jovem presidente Samora Machel chegando de moto para o trabalho. Joaquim Chissano que, anos depois, o sucedeu no governo, era o ministro das Relações Exteriores. Angola era o caso mais triste porque ainda estava em violenta guerra civil e com toque de recolher. Zimbábue parecia o mais organizado e mais promissor de todos os países. O primeiroministro era Robert Mugabe, um homem que tinha lutado contra o regime racista da antiga Rodésia, também tinha ido para prisão e fazia parte de um governo da frente contra de libertação. Exatamente como anos depois aconteceu na África do Sul sob a liderança de Nelson Mandela.
A história do que se passou nas décadas seguintes mostra que a qualidade de uma liderança determina, às vezes, o destino de um país, para o bem ou para o mal. Mandela, libertado em 1990, se transformou no líder da conciliação e tolerância, unificou o país, consolidou a economia, saiu do poder e se transformou no maior ícone vivo dos tempos atuais. O país evidentemente tem inúmeros problemas e o atual presidente está bem longe do modelo, mas Mandela deixou um inegável saldo positivo.
No Zimbábue, Robert Mugabe de primeiro-ministro foi para a presidência, em 1984, e do cargo jamais saiu. Perseguiu e expulsou as lideranças brancas, e depois perseguiu os líderes políticos negros que não faziam parte do seu grupo.
Como a produção agrícola e industrial do país estava sob o comando dos beneficiários do antigo regime, ele acabou demolindo a estrutura produtiva. Conduziu eleições fraudulentas e comanda um governo corrupto.
É uma antítese de Mandela. Fez muito bem o Dunga de recusar-se a ir visitar seu palácio.
O país não apenas regrediu.
Ele entrou num processo prolongado de recessão, que pode ser definido como depressão. Nos últimos 10 anos, o PIB encolheu em todos e em alguns momentos chegou a diminuir 7% num ano. Como se não bastasse, o país entrou num processo de hiperinflação aberta que devastou o que restava da economia.
Os números da hiperinflação zimbabuana ainda são confusos, alguns especialistas dizem que ela se tornou a maior da história, outros, que ela foi a segunda maior, perdendo para a hiperinflação húngara, em 1946. Mas certamente superou a mais famosa das hiperinflações, que foi a alemã, de 1922-1923. Veja no quadro abaixo do professor Steve Hanke.
Em julho de 2008, 10 zeros foram cortados da moeda, o país chegou a imprimir uma nota de 100 bilhões de dólares zimbabuanos.
No final de 2008, o Banco Central parou de divulgar dados da inflação, em janeiro do ano passado, num estágio final de abandono da moeda local, o país oficializou o uso de várias moedas estrangeiras, entre elas, o dólar.
O Zimbábue que viveu esse horror econômico paga hoje um trágico preço: 80% da população está abaixo da linha da pobreza, o desemprego é devastador e o país perdeu seu futuro. E perdeu também os anos de forte crescimento da África, de 2002 a 2008, quando Angola chegou a crescer 23% num único ano. A reconstrução do Zimbábue só tem chances de acontecer apenas na era pós-Mugabe.
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