Naiara Magalhães
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Um menino de 10 anos costumava chamar a atenção dos transeuntes da cidade de Lahore, localizada no nordeste do Paquistão, nos anos 90. Em espetáculos de rua, ele andava sobre carvão em brasa e feria-se com facas, mantendo a expressão plácida de quem caminha sobre um tapete macio ou recebe um carinho. Um geneticista da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, soube da situação do garoto e suspeitou tratar-se de um caso raro de insensibilidade congênita à dor – uma síndrome hereditária que não afeta outros aspectos da saúde da pessoa. Antes que o geneticista pudesse investigar a fundo aquela situação incomum, o menino morreu ao pular de um telhado. Como não tinha sensações fisicamente dolorosas, não auferia delas uma de suas vantagens: a de afastá-lo de situações potencialmente perigosas. O pesquisador, então, se juntou a outros especialistas ingleses e paquistaneses para buscar casos semelhantes na região. Eles encontraram seis crianças, todas parentes do garoto morto, também incapazes de sentir dor. Os especialistas, então, puseram-se a estudar o seu DNA.
Depois de seis anos de estudos, descobriu-se que uma única mutação genética havia tornado as crianças totalmente insensíveis à dor. O gene alvo da mutação era o SCN9A, responsável pela produção dos canais de sódio 1.7, estruturas localizadas nas paredes das fibras nervosas e cruciais no mecanismo da dor (veja quadro). Nas situações crônicas, eles funcionam em excesso, ou porque são superestimulados por uma inflamação persistente, ou porque há um aumento no número de canais, por motivos ainda desconhecidos. Quando ocorre uma mutação genética como se encontrou no estudo, esses canais não funcionam. A descoberta, publicada em 2006 na revista Nature, despertou o interesse da indústria farmacêutica. Quatro laboratórios têm se empenhado em desenvolver um novo analgésico que imite o efeito da mutação – ou seja, bloquear o funcionamento dos canais de sódio 1.7 e, assim, suprimir a dor crônica. Um deles está perto de conseguir. O laboratório italiano Newron, de Milão, especializado em medicamentos contra a dor, prevê para 2013 o lançamento de seu novo analgésico, cujo princípio ativo foi batizado de ralfinamide.
O ralfinamide deve ser mais específico – e, portanto, mais potente e com menos efeitos colaterais – que os analgésicos hoje disponíveis. Segundo o coordenador da equipe médica do Newron, Ravi Anand, o ralfinamide agirá somente nos canais de sódio 1.7 – ao contrário dos demais remédios, que atingem indiscriminadamente outros canais de sódio existentes nas células, mesmo que eles não tenham relação com a dor. O medicamento está na última fase de teste com humanos, a derradeira antes de ser submetido à regulação das autoridades sanitárias. Por enquanto, ele está sendo testado em pacientes com dor neuropática lombar, uma das mais difíceis de ser tratadas. "Mas, depois de aprovado o remédio, seu uso deverá ser ampliado para outros tipos de dor crônica", disse a VEJA Ravi Anand. As pessoas que sofrem com as fortes dores causadas por câncer, diabetes e herpes-zóster poderão se beneficiar.
Hoje, boa parte das dores crônicas é tratada com medicamentos originalmente indicados para outros fins. Por isso, os pacientes têm de se haver com uma série de efeitos colaterais (veja o quadro abaixo). Os antidepressivos e os anticonvulsivantes, por exemplo, podem provocar sonolência e dificuldade de concentração. Até os mais específicos apresentam problemas: a morfina e outros derivados do ópio, mesmo se usados em dosagens menores, podem causar dependência. E o uso prolongado de anti-inflamatórios pode resultar em hemorragias estomacais, além de outros danos graves.
Uma dúvida ainda precisa ser esclarecida sobre o ralfinamide: ele poderia comprometer a sensibilidade a qualquer tipo de dor, um efeito nada desejável, visto que sensações dolorosas são um alarme essencial do organismo para mostrar que algo não vai bem? "É pouco provável que isso venha a ocorrer", avalia o neurologista Daniel Ciampi de Andrade, médico do Grupo de Dor do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Embora os canais de sódio 1.7 sejam um dos principais elementos no processo que detona a dor, eles não são os únicos. A opinião geral é que o novo analgésico pode representar uma revolução. "Para a maioria das pessoas com dores crônicas, os remédios de hoje proporcionam uma melhora de 60% a 70%. Com o ralfinamide, essa cifra pode chegar perto dos 100%", diz a neurocientista Silvia Siqueira, coordenadora do Laboratório de Sensibilidade do Grupo da Dor do Hospital das Clínicas. A ironia é que, se tudo der certo, o alívio de quem sente dores permanentes terá nascido de um menino que morreu justamente porque não sentia dor.