SÓ O MITO, E NADA DO HOMEM
Che finge contar como Guevara virou um líder da Revolução
Cubana – mas não passa de uma peça de propaganda encoberta
Isabela Boscov
Divulgação |
REVOLUÇÃO ROMÂNTICA Del Toro, como Che (à esq.), e Santiago Cabrera como Camilo Cienfuegos: de "puro", só o charuto Montecristo |
VEJA TAMBÉM
|
Depois de Diários de Motocicleta, mais um filme se dedica – e "dedicar-se", aqui, não é força de expressão – a romantizar Che Guevara e reforçar o mito do revolucionário que se martirizou em prol da justiça para os oprimidos. Na primeira parte de Che (Estados Unidos/ Espanha/ França, 2008), que estreia nesta sexta-feira no país, o argentino Guevara, interpretado por Benicio Del Toro, conhece Fidel Castro, junta-se à luta armada liderada por ele em Cuba e passa dois anos na selva da ilha, transformando camponeses em guerrilheiros, galgando a hierarquia do movimento e trabalhando incansavelmente pela revolução, sem se deixar abater pelos recursos escassos nem pelos graves ataques de asma. Às vezes manifesta sua inflexibilidade ou ordena a execução de algum traidor ou desertor. O filme do diretor Steven Soderbergh, de Traffic e Onze Homens e Um Segredo, termina às vésperas da entrada na capital, Havana, e da vitória; a segunda parte, que ainda não tem data de lançamento aqui, retoma a trajetória de Guevara vários anos mais tarde, já na Bolívia, onde sua tentativa de organizar uma revolta campesina fracassou e ele foi assassinado pelo Exército boliviano. Entre as duas partes de Che há uma elipse e tanto: justamente os anos do poder, sobre os quais seria preciso mencionar a atuação catastrófica de Guevara como ministro da Indústria e presidente do Banco Nacional e as centenas de execuções que determinou enquanto diretor da prisão de La Cabaña. (Del Toro, que foi a Cuba conhecer muitos correligionários de Guevara mas esqueceu de ouvir seus críticos, aparentemente teve notícia dos assassinatos pela primeira vez durante uma entrevista a uma furiosa repórter de uma TV de Miami, cidade lotada de refugiados cubanos que têm pouca paciência para com as tentativas de santificação do "Comandante".)
Soderbergh ilustra bem o método pelo qual o mito de Guevara segue sendo reiterado em certos círculos – método que envolve alguma habilidade e um tanto de safadeza. Che respalda suas omissões numa estrutura dramática que trata do "sonho" revolucionário, e assim fica livre para descartar a crescente atrocidade de Guevara e o barbarismo em que cairiam os movimentos sociais que adotaram a luta armada. Mas, como o diretor permite uma ou outra espiadela nos pés de barro do santo, pode fingir-se de íntegro e voltar as acusações sobre Guevara contra quem as faz. Soderbergh assim descartou as objeções dos que ele define como "anti-Che": "Qualquer quantidade de barbaridades que incluíssemos no filme não bastaria para satisfazê-los". Por essa inversão, quem tem sede de sangue são os detratores de seu personagem – e não o próprio personagem. Uma manobra ágil, e perfeitamente desonesta.