Uma maledicência persegue as ideias de Fernando Henrique Cardoso. Ele discursa e lhe enviesam a fala; escreve, e lhe envenenam a palavra. Basta ver a recente confusão sobre seu artigo, onde defende que a oposição se aproxime da classe média. Disseram que FHC mandou desistir do "povão". Uma maldade política. Não é a primeira vez que deturpam o pensamento de FHC. Até dos gestos já lhe roubaram veracidade. Na campanha presidencial de 1994, o então candidato montou um animal que passava arreado em Belmiro Gouveia, sertão de Alagoas. Deu na imprensa: "FHC anda de jegue." Não era jegue, mas um cavalo baio. Puro preconceito. Sua mais famosa frase jamais foi pronunciada. "Esqueçam o que escrevi" foi a tradução maldosa do jornalista que o escutou responder, indagado, que nem tudo aquilo que redigira na época cepalina, anos 1960, ainda valia nos tempos globalizados da economia mundial. A declaração - uma obviedade intelectual - ocorreu em reunião com empresários no restaurante Rubayat, aquele existente na Alameda Santos, capital paulista. Eu estava lá. Tem mais. Já na Presidência da República, FHC sofreu quando, querendo impulsionar a reforma da Previdência, criticou as altíssimas aposentadorias de certos funcionários públicos, taxando-os de "alguns vagabundos". Na interpretação maliciosa, estourou a manchete: "Presidente diz que aposentado é vagabundo". Sacanagem da boa. Agora, ao se referir à classe média, FHC chamou a atenção sobre o importante fenômeno da ascensão social. Impulsionada pelo Estado e permitida pelas modernas tecnologias, a começar da comunicação aberta pela internet, a economia abre fantásticas oportunidades. Na cidade e no campo, milhões de famílias progridem a olhos vistos. A política tradicional, incluindo o sindicalismo, não consegue atender às expectativas dessa gente progressista. O velho esquema consegue, a seu jeito, se aproximar das massas operárias, enquanto o populismo cuida de manipular os miseráveis. Mas a juventude, da idade e das ideias, mora longe daí. Alguém disse que FHC defende uma guinada à direita do PSDB. Conclusão esdrúxula. Considerar o povo na "esquerda" enquadrando as novas classes médias na "direita" significa inverter o rumo da história moderna. Quem pensa assim está fossilizado pelos antigos axiomas ideológicos. Zero de século XXI. Prestes a completar 80 anos, FHC mostra uma lucidez de raciocínio que espanta seus interlocutores. Nenhuma liderança política do país olha à frente como ele. Ajuda-o, com certeza, sua formação intelectual misturada pelas cores da política. O brilho do ex-presidente parece despertar inveja, ou ciúmes, de seus oponentes mais tacanhos. Certos petistas aproveitaram a brecha dessa discussão para estocar que FHC nunca esteve próximo do povo. Coisa ridícula. Antes de muitos deles nascerem o sociólogo FHC já andava pelas favelas de Porto Alegre e São Paulo pesquisando a segregação racial. E o presidente FHC não teria vencido duas vezes o Lula, no primeiro turno, sem o apoio decisivo das massas. Foi exatamente graças ao programa de estabilização da economia, conduzido por FHC, que o "povão" começou a ter seu ganho elevado, em termos reais. Com o resgate da sua moeda - e prestações fixas a pagar -, os eletrodomésticos e demais bens de consumo chegaram aos lares dos brasileiros pobres. Há políticos que mentem deliberadamente. Os mentirosos compulsórios sempre apresentam algum trauma psicológico. Não sou especialista nesse ramo. Mas acho que os petistas se envergonham da época que denunciavam o Plano Real como uma impostura. Depois, quando o adotaram, dele se beneficiando, sonham que mudaram o Brasil. Mas acordam à noite com pesadelos. Sabem que o autor da façanha se chama FHC.
XICO GRAZIANO foi deputado federal e presidente do Incra, no governo Fernando Henrique Cardoso. |