Arte
Entre o lixo e os grandes mestres
Uma mostra no Rio de Janeiro enfoca a trajetória de Vik Muniz,
o brasileiro que conquistou prestígio internacional com uma obra
feita de materiais inusitados e referências aos clássicos da arte
Marcelo Marthe
Fotos divulgação e Oscar Cabral |
DO LUXO AO LIXO |
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Visitar o aterro sanitário do Jardim Gramacho, destino de 80% das 8000 toneladas diárias de lixo produzidas na Grande Rio de Janeiro, é uma experiência que ninguém esquece. No terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, às margens da Baía de Guanabara, uma montanha gigantesca de detritos emoldura uma paisagem desolada, pontuada por montículos de material incinerado que lançam no ar uma fuligem que impregna tudo com que entra em contato, e por poças de chorume, o líquido esverdeado que se desprende do lixo em decomposição. Nesse cenário, o fotógrafo e artista plástico Vik Muniz, 47 anos, tocou o seu principal projeto dos últimos anos. Trata-se de uma espécie de negativo do mundo em que ele vem brilhando desde os anos 90 – o mundo das artes plásticas dos Estados Unidos. Muniz é um vencedor: mudou-se para lá jovem e sem dinheiro, há 25 anos, e hoje goza de enorme prestígio. Suas obras estão nas coleções de grandes museus como o Metropolitan, de Nova York, e o Centro Georges Pompidou, em Paris. É também o único brasileiro vivo que consta no livro dos 501 maiores artistas de todos os tempos, da editora Penguin. Cada fotografia de Muniz custa em média 40.000 dólares – e ele não vende menos que cinquenta por ano. No momento, responde ainda pela curadoria de uma mostra de sucesso no MoMA nova-iorquino. A partir de sábado 23, uma retrospectiva de 131 obras no Museu de Arte Moderna do Rio (que em abril aportará no Masp, em São Paulo) dará a chance para que se entendam as conexões entre os dois mundos tão distantes de Vik Muniz.
A série Imagens de Lixo é um dos pontos altos da mostra. Por algumas semanas, Muniz juntou-se aos catadores do Jardim Gramacho na tarefa de revirar as pilhas de lixo que se perdem no horizonte. "O lixo me fascina como todas as partes de nossa história que ficam pelo avesso, ocultas, ou que fazemos questão de varrer para debaixo do tapete", afirma. (Muniz tem pendor para a filosofice. Dá vazão a ela em aulas e palestras, bem como no livro Reflex, de 2007, misto de autobiografia, crônica e ensaio, com reflexões que vão da história da arte à neurologia.)
A escolha de material "estranho" com que trabalhar tem sido uma constante na obra de Muniz. Ele já compôs imagens com açúcar, poeira, sucata, caviar. A cada vez, precisa dominar a substância, com suas características físicas particulares, antes de empregá-la para a pintura ou o desenho (para desenhar com chocolate, por exemplo, é necessário fazer tudo muito rápido – caso contrário, a calda endurece). A fase seguinte é a de recriar imagens célebres da história da arte ou da cultura popular – Boris Karloff com caviar, Liz Taylor com diamantes – sem pudor nenhum de tomar emprestado. Às vezes, Muniz copia o que já era cópia: sua Mona Lisa de pasta de amendoim teve como ponto de partida uma série do americano Andy Warhol, e não o original de Leonardo da Vinci. "Como reza o ditado, ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão", diz o artista. Finalmente, as montagens são fotografadas, o que lhes dá um verniz quase publicitário. O resultado é um entrecruzamento de referências que não são necessariamente difíceis de decifrar – há quem diga que Muniz só emprega "metáforas fáceis" – mas têm uma riqueza inegável, tanto simbólica quanto sensorial. Como comentário social, as Imagens de Lixo não são mesmo profundas, mas sua execução é admirável: usando catadores da usina de reciclagem de Gramacho como modelos, o artista recriou quadros clássicos de Picasso ou Goya, projetou-os no chão de um galpão em dimensões semelhantes às de uma piscina olímpica, usou o lixo para criar contornos, cores e texturas e, finalmente, acionou a máquina fotográfica.
Fotos divulgação |
TAPETE VERDE |
Muniz gosta de dizer que é um homem brasileiro – mas um artista americano. De fato, sua obra tem mais ligação com as tendências que surgiram nos Estados Unidos a partir dos anos 60, com a explosão da pop art de Warhol e companhia, do que com qualquer tropicalismo – não tem aquela certa cor local, por exemplo, da pintura da colega Beatriz Milhazes. Sua trajetória explica por que ele acabou ficando mais próximo de lá do que de cá.
Filho de um garçom e de uma telefonista, Muniz teve uma infância humilde na periferia paulistana e se angustiava com o marasmo cultural do Brasil da ditadura militar. Certo dia, ao tentar socorrer um sujeito envolvido numa briga de rua, levou um tiro do homem a quem tentava ajudar. "Como ele era rico e não queria confusão com polícia, me ofereceu uma recompensa", lembra-se. Com o dinheiro, Muniz comprou sua passagem para os Estados Unidos. Sem profissão definida e sem falar inglês direito, seus primeiros anos no novo país foram difíceis. Muniz viveu com uma tia num subúrbio de Chicago e, depois de se mudar para Nova York, passou quatro anos como imigrante ilegal e viu naufragar seu primeiro casamento, do qual tem um filho de 18 anos. Aos poucos, contudo, enfronhou-se na vida cultural nova-iorquina, conheceu artistas e galeristas e foi cavando seu espaço.
ARTE DE VALOR |
Em 2000, casou-se pela segunda vez, com a pintora Janaina, que tem mãe brasileira e pai alemão. Os dois são pais de uma menina de 3 anos. Desde então, Muniz tem passado mais tempo no Brasil – no melhor estilo "retorno às raízes". "Tenho um garoto pobre dentro de mim. Ele me dá acesso a outro lado da vida que não posso esquecer, e que me permite fazer trabalhos como os da série Imagens de Lixo", afirma. Vik Muniz diz que tem uma pontinha de peso na consciência por sua riqueza – mas não a ponto de rejeitar tudo o que conquistou. Acaba de comprar, aliás, um apartamento na Avenida Vieira Souto, a mais luxuosa da orla carioca.
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