Política
A mídia brasileira quer a volta da diplomacia sem sapatos de FHC.
Agência Carta Maior
O homem de vários tempos
A direita não esconde seu desconforto. Sonha com a implosão de tudo que foi conquistado e o retorno ao estatuto colonial preconizado pela diplomacia sem sapatos de FHC.
Gilson Caroni Filho
Pediatra de nomeada competência, o doutor Gilson Caroni também se destacou na vida pública. Quer na medicina, quer na política foi homem de olhos clínicos e diagnósticos precisos. Em Cachoeiro do Itapemirim, sul do Espírito Santo, tal como no famoso verso de Paul Valéry, viveu e morreu aquilo que viu. Mas só viu o que sonhou. E viu muito enquanto espreitava da sacada do Itabira Hotel, as águas turvas do rio Itapemirim.
Liderança regional expressiva do antigo MDB conheceu as desditas da política capixaba. A prefeitura de Cachoeiro, a Secretaria Estadual de Saúde e a chefia da Casa Civil foram momentos distintos de sua trajetória pública. Nas conversas que tivemos sobre política, uma coisa ficou clara: era uma pessoa dotada de sólida formação humanística e aguçado poder analítico. Animal político como poucos, enxergava muito além da conjuntura imediata. Velho quadro do Partido Comunista Brasileiro (ex-PCB) prenunciava o arrivismo de Roberto Freire e Alberto Goldman, então expoentes da sigla, numa simples sentença: “não compõem com a direita, pois dela já fazem parte há muito tempo”
Na mobilização política pelo impeachment do presidente Collor vislumbrou a expressão de recorrentes pactos intraelites. Alertava para o papel da imprensa na construção das representações do momento e afirmava que os “caras-pintadas” só ocupavam centralidade no noticiário para ocultar a real natureza da crise. Antevia, em meados de 92, que o saldo final do movimento seria favorável às forças conservadoras. O clamor pela ética, quando acompanhado de vazio político, produz um vaudeville burguês. Mais um prognóstico preciso do velho pediatra.
Fazia sérias restrições ao que se convencionou, à época, chamar de nova esquerda. Faltava a esta, segundo ele, concepções claras de socialismo, só possíveis, e pausava bem as palavras, “quando se estuda a fundo o capitalismo”. Nunca, e essa foi a nossa maior divergência, viu no PT uma alternativa à esquerda. Fitando o trem que passava com precisão suíça, perguntava qual era, afinal, o projeto do partido. E, de soslaio, observava irônico o embaraço do filho a esgrimir palavras de ordem em vez de argumentos sólidos.
Lembro-me de que, em janeiro de 95, no que seria a nossa última conversa, observou que a eleição de FHC traria o total sucateamento do país com aplausos de amplos segmentos da classe média. A hegemonia neoliberal estava consolidada e não seria batida em curto prazo. Não viveu para ver a correção do vaticínio, felizmente ultrapassamos seu último acerto.
Seria interessante vê-lo analisar o atual cenário político. Um ano que começou seis meses antes do seu primeiro dia solicita observadores de primeira grandeza. O pleito eleitoral de outubro é algo que vai muito além de um rito sucessório. A vaguear com conterrâneos ilustres, talvez esteja o bom médico debruçado sobre a complexidade do momento. Há de ter vislumbrado o que representa um provável retorno da coalizão demotucana.
Concordará, decerto, que numa eleição presidencial no Brasil, se decide muito do futuro da América Latina. A política externa brasileira colocou o país como eixo de uma ampla aliança, que vai de Cuba a Venezuela por um lado, até a Argentina e o Uruguai por outro. Estamos construindo o único espaço de integração regional possível, o pressuposto para a inserção altiva no mundo globalizado. Portanto, nas urnas de outubro, principalmente após a derrota da Concertación no Chile, repousa a sorte dos povos indígenas da Bolívia e Equador, da aguerrida população argentina, de nicaragüenses, venezuelanos, cubanos, mexicanos e paraguaios, entre outros.
A direita não esconde seu desconforto. Sonha com a implosão de tudo que foi conquistado e o retorno ao estatuto colonial preconizado pela diplomacia sem sapatos de FHC. Não é à toa que Celso Lafer e Rubens Barbosa reapareçam em telas e páginas como “abalizados especialistas”, condenando o governo Lula “ por ter partidarizado o Itamaraty.”
O que os jornalistas de programa, reunidos no Instituto Millenium, pensam a respeito de democracia e soberania nacional não é segredo. O velho fascismo oligárquico sempre dispôs dos préstimos dos praticantes do jornalismo de esgoto. Uma espécie que, hoje, com as novas tecnologias, se reproduz em blogs de corporações e redações de sinas conhecidas. Nesse quadro, qual seria a prescrição do doutor de Cachoeiro de Itapemirim? Reunificar a esquerda em sintonia com movimentos sociais, tendo como eixo central a intervenção decisiva no processo de difusão social de informações.
O inimigo de classe se move com desenvoltura, disposto, se necessário, a fazer tábua rasa do ordenamento institucional que permite incorporação de novos atores. Ao esquerdismo sectário, o pediatra diria que qualquer desencanto com o atual governo não autoriza suicídio político. Com um sorriso no olhar, o médico não hesitaria em dizer: “votar contra o tucanato é, como nos velhos tempos, no mínimo, voto útil”. Há que se ouvir quem, encantado, virou prefeito do mundo. E, nessa condição, sabe como é importante a eleição de Dilma Rousseff para o Brasil e seus vizinhos.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
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