Quem é do tempo dos velhos bondes há de lembrar aquela freadinha de leve que desequilibrava os passageiros em pé e permitia que, ao se reposicionarem, dessem lugar a mais passageiros. Era uma tática dos motorneiros para fazer caber toda a demanda na escassez das viagens.
Foram-se os bondes na ilusão da modernidade rodoviária. Mas o freio de arrumação vez por outra é uma necessidade. É o caso do Brasil urbano.
A percepção comum é que nossas cidades estão à beira de um ataque de nervos. E sabemos que não é sem razões.
Produto da cultura, nada na cidade é por conta da natureza. Tudo nasce do desejo da sociedade (expresso pela política), e a ponte entre o desejo e sua materialidade é o projeto. A cidade precisa ser permanentemente projetada.
Contudo, no Brasil há enorme escassez de pensamento crítico sobre a cidade bem como de quadros públicos que a tratem no médio e longo prazos. Acostumamo-nos com a emergência, imposta por duas explosões: a demográfica, que traçava suas próprias soluções urbanísticas, e a inflacionária, que desmoralizava o tempo do pensar.
Mas o país hoje é outro. O crescimento demográfico estancou; a inflação foi superada. Com população de mais de duzentos milhões de brasileiros, onde cada cidade é um universo complexo, não cabe mais o improviso. Seu grande passivo socioambiental a vencer exige estudo, planejamento e cuidado. Sobretudo, ante a crescente desigualdade social intraurbana, a universalização dos serviços públicos é uma agenda premente ainda sem projeto.
Nessa agenda premente, a governabilidade é crucial.
Por exemplo, nas grandes cidades, há duas escalas espaciais desprovidas de atenção (de governo): a metropolitana e a distrital. As instituições existentes não dão conta dessas duas realidades.
Com a recente aprovação pelo Congresso, a lei (ainda não sancionada) do Estatuto da Metrópole será útil para a primeira escala. A articulação político-administrativa entre municípios que compõem uma cidade metropolitana pode dar os primeiros passos. Felizmente, o Rio de Janeiro parece buscar esse caminho.
Na outra ponta, falta protagonismo à escala local. Em grandes municípios, tais como Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, com milhões de habitantes, a centralização de poder leva a uma exagerada assimetria entre bairros e regiões na prestação de serviços e nos investimentos públicos, exacerbando a desigualdade social intraurbana. Não sendo o caso de desmembramento municipal, é hora de institucionalizar algum protagonismo político-administrativo nessa escala, com projetos, metas e indicadores específicos, bem como com clara territorialização dos recursos públicos. Quem sabe seja útil um "Estatuto do Bairro"? Ou do Distrito?
O ano de 2015 é anunciado com perspectivas sombrias quanto aos recursos públicos. Haverá pouco dinheiro para investir. É o momento para os governos, nos três níveis, refazerem (ou iniciarem) suas estruturas técnicas e políticas voltadas para o estudo e o planejamento das cidades. É tempo de recomeçarem os projetos. Está provado que o voluntarismo governamental sem projeto, mesmo com muito dinheiro, não dá bom resultado. O petrolão é exemplar. Obras sem projeto definido servem a cartéis e ao superfaturamento. Empreiteiras não são boas projetistas...
Ano novo, vida nova. Novos governantes. Novo ministro das Cidades (oxalá busque recuperar os objetivos da pasta). No Brasil urbano, um freio de arrumação é necessário — e talvez não seja uma freiadinha de leve.
A todos nós, bom ano de 2015.
PS. Por falar nisso, quando os bondinhos de Santa Teresa entrarão nos trilhos?
Sérgio Magalhães é arquiteto