Gaza sem Pétain Demétrio Magnoli
Política

Gaza sem Pétain Demétrio Magnoli


No verão de 1940, após a queda de Paris, instalou-se em Vichy o regime colaboracionista do marechal Philippe Pétain. O governo de Vichy exercia autoridade civil sobre toda a França, inclusive o norte, ocupado pelos alemães. A existência daquele regime, com raízes na vertente da direita francesa atraída pelo fascismo, propiciou à Alemanha uma liberdade de ação militar que não teria se fosse obrigada a posicionar tropas em todo o território francês. A sangrenta ofensiva de Israel é o substituto, pouco eficaz, de um Pétain que inexiste na Faixa de Gaza.

O então premiê Ariel Sharon promoveu, há três anos, a retirada das tropas e dos assentamentos israelenses de Gaza, concedendo autonomia ao governo da Autoridade Palestina (AP), presidido por Mahmoud Abbas. Diante do congelamento do processo de paz, o gesto descortinava o horizonte estratégico de perenização da soberania israelense sobre toda a Palestina histórica pela colaboração da AP com Israel. Sem forças militares acossadas permanentemente pelo levante palestino na língua de terra destituída de valor real ou simbólico, Israel poderia concentrar-se no acalentado projeto de anexação a seu próprio território dos assentamentos na Cisjordânia.

Toda a estratégia ruiu em junho de 2007, em razão da derrubada do governo de Abbas em Gaza pelo partido fundamentalista Hamas. Israel não pode ter os dois: deve escolher entre as concessões inevitáveis derivadas de um acordo de paz e os custos políticos e militares da ocupação física. Esta é a mensagem enviada pelo Hamas desde que se instalou no poder em Gaza e intensificou o lançamento de foguetes precários sobre o sul de Israel.

O Gabinete israelense de Ehud Olmert preferiu iludir-se, insistindo na estratégia de Sharon. Para isso fixou o objetivo utópico de impor a reunificação do governo palestino sob a AP. Na tentativa de apear os fundamentalistas do poder, Israel negociou apenas com Abbas, isolou diplomaticamente o Hamas e bloqueou as fronteiras de Gaza, ampliando o desemprego, a pobreza e o desespero de 1,5 milhão de palestinos. Sem sucesso: é possível escolher muitas coisas, mas não os representantes de outra nação.

Destacados políticos de Israel indagam, com genuína perplexidade, sobre as motivações dos ataques de foguetes do Hamas. A resposta é óbvia - e Israel deveria conhecê-la desde que, há meses, negociou um cessar-fogo provisório com os fundamentalistas: o governo de facto de Gaza exige ser reconhecido como interlocutor diplomático. Não há alternativa a isso, exceto a tragédia que seria a substituição do Hamas pelos jihadistas de Osama bin Laden. Sob os efeitos do bloqueio econômico israelense, a popularidade do governo de Gaza declinou até um limite perigoso e setores de suas brigadas militares entabularam contatos sigilosos com a Al-Qaeda. O reinício do lançamento de foguetes sobre Israel teve como motivação imediata a restauração da auréola de resistência que cerca o Hamas.

Não há solução militar para o impasse estratégico. As pilhas de cadáveres provocadas pelos bombardeios aéreos israelenses não servem como dissuasão para um partido fundamentalista que raciocina com base no conceito de martírio. A guerra do ar não pode evitar a continuidade das salvas de foguetes. Já a invasão terrestre, com custos políticos incalculáveis, só interromperia os ataques pela reocupação permanente do território, algo intolerável para a opinião pública israelense e internacional. Uma alternativa seria derrubar o governo do Hamas e reconduzir Abbas para Gaza a bordo de um tanque de Israel. Mas, mesmo na hipótese improvável de que o presidente da AP embarcasse no tanque, um regime títere não sobreviveria à saída das tropas invasoras. Pétain representava um setor significativo da sociedade francesa; Abbas, hoje, é visto como pouco mais que um colaborador de Israel.

Dez anos atrás, perguntado sobre o que faria se tivesse nascido palestino, o então candidato a primeiro-ministro e atual ministro da Defesa, Ehud Barak, replicou: "Eu me uniria a uma organização terrorista." Ele estava errado, pois o terror é condenável de modo absoluto, em qualquer circunstância. Mas sua resposta evidencia o absurdo da política conduzida por Israel, que tirou de cena cada um dos potenciais interlocutores palestinos, até sobrar apenas o Hamas. Arafat foi humilhado tantas vezes que se tornou um líder imprestável. Marwan Barghouti, o mais popular dos opositores nacionalistas de Arafat, um homem que condenou o terror no auge dos atentados suicidas, está preso desde 2002. A guerra contra o Hamas equivale a persistir num rumo que interessa exclusivamente aos jihadistas.

Israel repete sem cessar o mantra de que o Hamas se recusa a reconhecer o Estado judeu. É um argumento tão verdadeiro quanto irrelevante, se não se conhecem as fronteiras definitivas do Estado que exige reconhecimento. O Hamas já sugeriu o estabelecimento de uma trégua que se prolongaria "até o infinito" na hipótese de acordo para a constituição de um Estado Palestino. O partido fundamentalista palestino não é a Al-Qaeda. Enquanto Israel emprega o rótulo "terror" para igualar bestas essencialmente distintas, Barack Obama abre um discreto canal de contato com o governo de Gaza.

Um ano atrás, Matan Vilnai, vice-ministro da Defesa israelense, pronunciou a palavra shoah, que evoca o Holocausto, para descrever o destino de uma Gaza que continuasse a servir de plataforma a ataques contra Israel. No mundo inteiro, propagandistas sem escrúpulos, inspirados pela sua frase raivosa, definem o bloqueio de Gaza e a guerra em curso como atos de genocídio. A meta histórica do antissemitismo, nas suas versões de direita e de esquerda, é fabricar uma identificação entre o Estado judeu e o Estado nazista. A deplorável estratégia de Israel confere uma película de verossimilhança à alegação dos mercadores do ódio.



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