Ulrike Marie Meinhof
“Trinta anos depois da sua morte violenta em 9 de Maio, as imagens são tão imponentes como no primeiro dia. Sobretudo as publicadas. A primeira placa de detenção, a primeira foto depois de presa, a imagem final de icone temerário. 1970, 1972, 1976; o número de anos assinalam que a ascenção da panfletária Ulrike Meinhof, de estrela intelectual do periodo estudantil a ícone da moral politica e dos direitos humanos, se verificou num breve periodo da sua vida, o último. O que se passou antes e o que aconteceu durante as acções da fracção armada do Exército Vermelho [RAF, Rote Armee Fraktion] permanece em tudo eclipsado. Poderia conferir plausibilidade indesejável ao seu último e arriscado passo. A posteridade reduziu a personagem praticamente a um papel de Joana d`Arc da resistência contra o Leviatan, o omnipotente super-monstro Estado. Elevaram-na ao Olimpo dos eleitos dispostos a morrer pelas suas convicções, como os santos Sócrates, Giordano Bruno (1540), Jan Hus e Michel Kolhas, a quem se fizeram justiciar na roda de tortura por serem pertubadores da ordem pública; dando-lhes razão depois do seu tempo.
A comoção provocada pela morte de Ulrike Meinhof em 1976 provocou arrebatadas manifestações por todo o território da República Federal da Alemanha. Em Frankfurt, onde houve uma convocatória em frente à Casa dos Estudantes, houve confrontos com as forças da Ordem pública. Em Stuttgart numa cidade sublevada incendiaram-se camiões da policia. No “suicidio” anunciado pelas autoridades poucos acreditaram; e isso teve relação com as confrontações. No tribunal de Stuttgart, que devia julgar 5 quadros do RAF, já se havia perdido um acusado, Holger Meins, a quem deixaram morrer de inanição em Novembro de 1974 em Wittlich. Os restantes três acusados morreriam igualmente dezassete meses depois na penitenciária de Stuttgart-Stammheim em circunstâncias nunca esclarecidas, de forma que nenhum dos julgamentos chegou a realizar-se. Foi sobretudo no momento da detenção que morreram a maior parte destes militantes inimigos do Estado, procurados com tão fervoroso ardor. Na maior parte dos casos foram executados de imediato, ainda que não fossem portadores de armas, desarmados, simples corpos caídos por terra. Tal facto alertou as opiniões públicas de que havia ordens superiores de não fazer prisioneiros. Werner Sauber (1) foi executado em 9 de Maio de 1975 num estacionamento em Colónia estendido indefeso sobre o asfalto, um ano antes de Ulrike Meinhof. O médico Karl-Heinz Roth sentado num automóvel junto dele caiu ferido com extrema gravidade. O terceiro, Roland Otto escapou ileso. Quando Otto e Roth foram absolvidos ainda ouviram dos policias: “deveriamos ter liquidado também os outros dois” A lista é enorme, desde Rauch e Weißbecker, até Grams, passando por Stoll e Van Dick. Todos executados em situações que não justificavam o uso policial de armas de fogo. Não há desculpa moral nem juridica para isso, por muito que os funcionários tenham propensão para o gatilho fácil, acusando os adversários disso mesmo, por temer pela sua própria vida e estabilidade.
No restante, as dúvidas sobre o caso Meinhof foram alimentadas pelo relatório da Comissão Investigadora internacional (publicado pela editora Maspero de Paris) que em 1978 dizia isto: “a afirmação das autoridades estatais, segundo a qual Ulrike Meinhof se matou a si mesma enforcando-se, não está provada. Os resultados das investigações permitem antes e melhor concluir que Ulrike Meinhof não podia ter-se enforcado por sua própria mão”
A opção pela luta armada começou no principio do Verão de 1970 e foi sem dúvida interpretada por muitos como uma ruptura vista com incompreensão. Estava porém dentro da lógica da oposição extra-parlamentar não actuar apenas por ataques verbais os excessos e efeitos da ordem social capitalista pós-fascista. Na bibliografia que lhe é dedicada, a separação do seu marido, o abandono da aconchegada existência pequeno-burguesa no bairro de alta sociedade de Elbchausee de Hamburgo e a sua mudança para Berlim Ocidental não são interpretados de um modo suficientemente claro como reacção ao espirito do tempo. O certo é que, como se via desde o 2 de Junho de 1967 – o dia em que as autoridades de Berlim reprimiram brutalmente uma manifestação diante da Ópera e deixaram que fosse executada uma estudante, com a finalidade de gerar uma escalada – que estava na ordem do dia o projecto de atacar directamente, como baluarte do imperialismo, o Estado e os seus obscenos representantes, de radicalizar a resistência mediante a propaganda por meio de factos. Ulrike Meinhof deixou a casa e o seu séquito quatro dias antes da Conferência Internacional contra os Crimes de Guerra dos Norte-americanos na Indochina, que começou em Berlim Ocidental a 17 de Fevereiro de 1968. A declaração final, que culminou com uma grande manifestação, pode ser lida hoje como uma chamada a que se passásse definitivamente à sublevação. Pedia-se abertamente e sem pruridos a colaboração politica e organizativa com os movimentos revolucionários de libertação e a criação de uma Frente Unida de Resistência nos Estados Unidos e nos paises da Europa Ocidental. Inimigo a abater: o imperialismo norte-americano e o seu peão de brega europeu. Objectivo: a Revolução Socialista Mundial.
Apenas dois meses depois ardiam os grandes armazens comerciais em Francfurt, um acontecimento que foi geralmente celebrado como a cerimónia fundacional do Exército Vermelho Alemão (RAF), porque empurrou os protagonistas para a ilegalidade, ainda que os danos tenham sido muito limitados. Ulrike Meinhof dedicou ao incêndio uma resenha que foi entendida por uma boa parte da esquerda como um convite a continuar trabalhando nessa linha. Talvez os redactores da resolução final da Conferência sobre o Vietname não tivessem dado âs palavras o sentido profético que outros lhe inferiram. Ou talvez se retractassem de imediato, à vista do que se havia organizado, e foram paralizados pelo medo face à sua própria coragem em relação com o que se tinha escrito. O facto é que Meinhof e os demais fundadores do RAF sempre tiveram como boa a esperança de que a sua luta lhes traria simpatias e apoios para se vencer por meios legais – ninguém hoje fala disso – da concepção como uma organização de massas, apenas um grupo de quadros como pontas de lança capazes de agudizar as contradições politicas e ampliar as margens de manobra da oposição legal. A tragédia dessa organização é que nenhum dos partidos burgueses se dispôs a aproveitar tais possibilidades, criando-se uma mudança que gerou a dessolidarização no futuro imediato (o aliciamento dos serviços secretos sob a capa da Operação Gládio) que inclusivamente chegou a incluir o bem intencionado conselho de Heinrich Böll: “devem aceitar um salvo-conduto para o exilio de Ulrike Meinhof “
As condições de encarceramento a que foi exposta Ulrike Meinhof a partir de 1972 eram homicidas. Na penitenciária de Colónia-Ossendorf a prisioneira chegou a estar por três vezes em isolamento total – a primeira imediatamente logo após a sua detenção e durante 237 dias. Sobre as consequências psiquicas e fisicas deste tipo de tortura escreveu um ensaio comovedor, que agora é uma importante peça da história da literatura. O objectivo dessas numerosas humilhações era claro e ela declarou-o abertamente: quebrar a personalidade. Pretendia-se devolver à opinião pública um objecto distanciado da sua biografia politica e estimular os seus companheiros na clandestinidade a abandonar uma luta desigual. Com alguns deu resultado. Contra os principais acusados que não cederam houve que adoptar medidas mais extremas. Outros ainda, como Christian Klar e Birgit Hogefeld, que não se deixaram instrumentalizar, continuam emparedados. Porém o que se discutia – e o autor desta biografia representava legalmente Andreas Baader – em cada visita ao sétimo andar da penitenciária de Stammheim, não era tanto as condições de encarceramento, que diga-se de passagem quando o perigo passou, se relaxaram um pouco em comparação com o inicio do processo, embora nunca se tivesse abandonado o isolamento em pequenissimos grupos. Um tema imprtante era a deterioração da situação politica: tornava-se cada vez mais precária a solidariedade com os presos, que regredia. Se no Verão de 1972 os objectivos e métodos do RAF ainda despertavam simpatias em amplos sectores da população, depois da morte de Holger Meins e da execução do presidente da Audiência de Berlim Günter von Drenkmann em finais de 1974, desmoronou-se inclusivamente a disposição para um compromisso para uma melhoria das condições de detenção.
Existem cartas da prisão, dirigidas a personalidades conhecidas, que mostram como os presos se sentiam crescentemente abandonados à sua sorte, até cairem completamente inertes. Que a acutilante vontade subversiva dos finais dos anos 60 se trocara por cobardia e resignação? Esse é um tema que dará para milhares de outras biografias, desde a Itália das Brigadas Vermelhas até ao derrotado Portugal de Abril. O colapso europeu tem a ver com a campanha mediática de ódio e criminalização contra toda a esquerda que tinha optado por um distanciamento profiláctico em relação aos cães de guarda partidários do regime. Quando Ulrike Meinhof morreu, assistimos a um último acto de encobrimento para a opinião pública, ocultando o facto de que havia uma prestigiada intelectual que era uma das grandes esperanças do activismo de esquerda em lingua alemã. Para além disso, depois dos atentados de 1977, também o grosso da “esquerda” institucional se alegrou que os quadros mais populares do Exército Vermelho Alemão estivessem finalmente mortos