Isabela Boscov
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MEU LUGAR É NA COZINHA Meryl Streep como Julia Child, que ampliou os horizontes gastronômicos dos americanos: o gosto pela comida pode ser a chave para o prazer da vida |
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• Quadro: Desbravadoras da grande cozinha |
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Só não é possível dizer que Julia Child brigou para conquistar seu lugar na cozinha porque, ora, ela estava ocupada demais para brigar. Julia, uma matrona de 1,88 metro e voz esganiçada, tinha de ser mimada pelo marido, o diplomata Paul Child, um homem adorável; tinha de se encantar com Paris, para onde se mudou em 1948; tinha de fazer amizades a torto e a direito (como observou seu marido, ela nunca chegou a descobrir que os franceses não eram exatamente paradigma de simpatia, porque com ela todos se sentiam compelidos a ser simpáticos); e tinha de comer, muito e muito bem, coisas que nunca imaginara provar. Ver Meryl Streep em Julie & Julia (Estados Unidos, 2009), que estreia no país na sexta-feira, suspirando meiguices para um linguado e estremecendo de contentamento com as garfadas que, cobiçosa, roubava de Paul (Stanley Tucci, também ele excelente), é lembrar como comer já foi um prazer simples e completo. Não assistir aos outros cozinhando, como se faz hoje quando se percorrem os canais de TV apinhados de programas de food porn: comer mesmo, do primeiro ao quinto prato e com uma garrafa de vinho para ser bebida inteira a dois no almoço, sem amolar os convivas com cálculos calóricos ou atualizações sobre a correlação entre a taxa de triglicérides e as várias doenças debilitantes que aguardam os que não se martirizam à hora das refeições.
De martírio, Julia não entendia nada. De gostar de comer, entendia tudo. E foi por isso, por gostar de comer, que aprendeu a cozinhar e virou um fenômeno inédito. Com sua desinibição costumeira, a americana achou de se matricular na reverendíssima academia de gastronomia Le Cordon Bleu, então reduto exclusivamente masculino. Lá, picou montanhas de cebolas, assassinou lagostas com facadas certeiras no cocuruto e desossou patos. Desvendou os segredos da sauce hollandaise e beurre blanc e fez galantines. E divertiu-se à beça, assiduamente, até obter seu grand diplôme.
Julia nunca se tornou uma chef com o status de um Paul Bocuse ou um Daniel Boulud. Aliás, mulher chef nenhuma foi até hoje mitificada com intensidade comparável. Os relatos das poucas que romperam tal barreira e comandam restaurantes famosos atestam um altíssimo grau de machismo no meio. Os homens replicam que o ambiente é competitivo até a morte e não deixa tempo nem energia para cuidar de uma família. Além disso, argumentam eles, as mulheres carecem da força física necessária ao desempenho em uma cozinha profissional. Difícil acreditar: quase metade do pessoal de cozinha nos restaurantes americanos hoje é composta de mulheres, que não são poupadas do trabalho pesado. As chefs executivas, em compensação, são por volta de 5% do total.
A própria Julia Child chegou a ter uma escola de cozinha – mas nunca um restaurante. Como é mais usual entre as mulheres que se associam à gastronomia (veja o quadro), ela virou guardiã e disseminadora de uma tradição culinária – uma espécie de extensão natural da tarefa cumprida durante tantos séculos, e passada de mãe para filha, de alimentar diariamente a família, diz Marcelo Traldi, professor de cultura gastronômica do Senac, em São Paulo. Em parceria com a amiga Simone Beck, Julia publicou em 1961 o primeiro livro de culinária francesa em inglês da história – Mastering the Art of French Cooking (Dominando a Arte da Cozinha Francesa). Não obstante ser um calhamaço repleto de instruções desafiadoras, ele continua sendo um best-seller. Julia e Simone trabalharam oito anos no livro, testando cada uma das 524 receitas e talhando-as para as mulheres que não tinham empregada mas não aguentavam mais fazer bolo de carne, abrir latas ou descongelar jantares prontos. Julia, em suma, descortinou para as americanas uma vida colorida por sabores e fragrâncias.
A epifania do público ficou completa quando, em 1963, Julia passou a estrelar um programa de TV que viraria parte do patrimônio cultural e afetivo dos americanos e que era ainda mais saboroso que as receitas. Entre grasnados, apupos e arrulhos (Meryl Streep imita à perfeição a voz inimitável da protagonista), Julia não ensinava só a cozinhar. Ensinava a amar a comida e a não ter medo dela. Caiu, derramou, queimou, grudou? Disfarce se for possível e comece de novo se não for: a cozinha é um lugar de alegria, não de sofrimento, e é um palco no qual se treina e ensaia, mas também se improvisa.
O filme, porém, tem mais um nome no título – o de Julie Powell, uma nova-iorquina frustrada com o emprego que, em 2002, se propôs a cozinhar todas as 524 receitas do livro clássico em um ano, relatando diariamente a experiência em um blog – depois, um livro de sucesso, o homônimo Julie & Julia, que, junto com Minha Vida na França, de Julia Child, é a base para o filme da diretora Nora Ephron. A história de Julie (Amy Adams) coloca em relevo a conquista formidável da decana. Durante um almoço, uma amiga de Julie arranca da boca dela um grissini, com cara de censura: se comer já foi um prazer genuíno, hoje é sinônimo de concupiscência, algo que se faz de forma neurótica e furtiva. Esta é a era da omelete sem gema, por um lado, e do fast-food gorduroso, do outro. Ou a pessoa morre de fome, ou se empanturra – e, em qualquer caso, não experimenta o deleite civilizado da refeição preparada com respeito e paixão. Julia usufruiu dele sem nenhuma culpa. Julie, pobre coitada, teve de domar não só técnicas culinárias como a própria neurastenia. É um contraste curioso: Julia desbravou um território masculino, mas a história de superação, aqui, é a de Julie, que teve de brigar consigo mesma e com uma cultura repressiva para poder sentir um prazer tão simples. E descobrir um segredinho que Julia e Paul conheciam bem: quem se abre para um tipo de prazer tende a ficar mais receptivo também a outros. Paris, enfim, foi uma festa.
Paris, enfim, foi uma festa.