Míriam Leitão - Pêndulo da Justiça
Política

Míriam Leitão - Pêndulo da Justiça




PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
3/9/2008

A Abin se sente injustiçada e acha que está sendo vítima de conspiração externa; o Supremo se sente vítima de espionagem; os políticos e integrantes do governo estão amedrontados. Não foi a publicação do diálogo entre o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres que provocou tudo isso. Ela foi apenas um indício que confirma o medo do país de ter virado a terra do grampo livre.

Talvez mais importante que a divulgação de um diálogo que a Abin teria gravado tenha sido a declaração do ministro Tarso Genro em julho, tratando com naturalidade o que deveria ter visto como um ataque aos direitos individuais. "Estamos chegando a um ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar ao telefone com a presunção de que alguém está escutando." Ao dizer isso, o ministro naturalizou o inaceitável e aconselhou o país a se conformar com uma deformação.

Na Abin, o sentimento é que o órgão tem muitos serviços prestados ao país, tem muito a fazer e é vítima de preconceito. O órgão tem um pecado original. Nasceu da chamada "comunidade de informações" do governo militar, que era a alma da repressão. Nunca passou por uma depuração. A renovação de pessoas veio apenas com o tempo, mas o velho ranço pode ter permanecido. Ontem o general Jorge Félix, do Gabinete de Segurança Institucional, admitiu que já houve casos de grampos ilegais e vazamento de informações por servidores.

A Polícia Federal se expôs mais. Ao se expor, ganhou tanta popularidade que entrou em dois desvios: o gosto pelo espetáculo e as brigas de tribos dentro da organização. Isso se agravou com a incompatibilidade entre Paulo Lacerda - bem-sucedido como diretor-geral da Polícia Federal - e o atual diretor, Luiz Fernando Corrêa.

Formou-se, a partir da guerra dos grupos, uma cooperação informal entre amigos que estão em órgãos separados, ao arrepio do ritual institucional. Na Abin, diz-se que os órgãos do governo devem e podem cooperar no combate ao crime, porque os prazos burocráticos criariam uma facilidade para o criminoso. Esse argumento deve ser levado em conta, mas isso é diferente de aceitar que eles ajam sem barreiras institucionais.

O temor de que eles não tenham limites é que está por trás da reação tão forte diante da notícia publicada pela "Veja". Ela é um indício que alimenta a suspeita dos brasileiros em geral - e do ministro Gilmar Mendes, em particular - de que os investigadores do governo viraram espiões que podem atacar a seu bel prazer.

Na conversa no Palácio do Planalto, na segunda-feira, Gilmar Mendes definiu como tosca a cooperação entre a Polícia Federal e a Abin, comparando-a ao acordo entre uma "padaria e uma verduraria". Paulo Lacerda foi ao Palácio pensando em apresentar a solução de um inquérito para se saber quem teria gravado e vazado. Mas não passou da sala do seu chefe, o general Jorge Félix. Não foi para a reunião. Lá, Gilmar tinha uma resposta pronta: que este tipo de problema é recorrente e um inquérito na Abin não teria nenhuma credibilidade. O presidente Lula reclamou também dos excessos das concessões de licença judicial para gravação. O Supremo está discutindo o tema, e uma das idéias é pedir ao Conselho Nacional de Justiça que discipline essas liminares.

O país chega, portanto, a um dilema: muitos dos suspeitos de corrupção estão exatamente no poder político do país: Congresso, Executivo e Judiciário. Como fazer para manter o sigilo necessário de uma investigação, e dividir essa informação com outras autoridades? Qual é o ponto certo entre pôr um limite ao investigador e impedir a investigação?

O país precisa de proteção, mas não é manietando a PF e a Abin que se conseguirá isso. Os suspeitos dos nossos principais males são exatamente pessoas com acesso ao poder, com capacidade de ligar para gabinetes poderosos e pedir favores indevidos.

Todos os escândalos dos últimos anos envolveram pessoas que estavam dentro da estrutura de poder, muitos desses ainda sem solução ou punição. Quem não se lembra do pacote de dinheiro encontrado com integrantes do escritório de campanha do presidente Lula na reeleição? Lula os chamou carinhosamente de aloprados.

O Brasil corre vários riscos. É urgente criar barreiras institucionais para evitar que surja uma nova comunidade de informações. Outro risco é de que o sistema de investigação policial seja neutralizado, quando ainda há muito trabalho a fazer no combate à corrupção.

O presidente Lula tem por hábito reescrever os fatos. Em clima de campanha em São Paulo, disse que ele e o PT foram vítimas do mensalão. "Em 2005 veio a guerra contra o PT. Vocês sabem o que nós passamos. Sabem as infâmias e leviandades. Eu olhava para o lado de lá e pensava: quem está nos acusando? Era a oligarquia deste país, que governava há 500 anos."

Quem acusou o governo foi um deputado da base parlamentar, a quem o presidente Lula disse que daria um cheque em branco; quem admitiu receber dinheiro no exterior foi o publicitário do presidente; quem admitiu caixa dois foi o tesoureiro do partido.

O equilíbrio desejável está em proteger os direitos individuais, criar barreiras institucionais contra excessos do aparelho policial, mas continuar investigando os erros e desvios ocorridos dentro do Estado.




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