Nova biografia analisa o governo de dona Maria I
em Portugal e mostra que ela não foi só "a louca"
Marcelo Bortoloti
Palácio do Itamaraty e Museu Nacional dos Coches |
DOM JOÃO VI (no detalhe) e dona Maria com seu tio-marido, dom Pedro III: a viuvez contribuiu para a loucura dela |
Dona Maria I (1734-1816) é personagem pouco estudada e muito folclorizada, tanto em Portugal quanto no Brasil. Lá, é vista como a rainha carola e medíocre que, um belo dia, depois de quinze anos de governo, surtou e deixou o trono. Aqui, como "Dona Maria, a Louca", mãe de dom João VI, que chegou ao país em 1808, junto com a família real portuguesa, e gritava com os escravos dizendo que o diabo estava no topo do Pão de Açúcar. Essas duas partes da história da soberana são normalmente contadas de forma estanque, separadas pela loucura que a acometeu em 1792 e acabou por afastá-la definitivamente do poder. D. Maria I, a Rainha Louca, biografia lançada em Portugal pela editora Esfera dos Livros, traça um retrato de corpo inteiro da rainha. A autora, a historiadora Maria Luísa de Paiva Boléo, reavalia o reinado de dona Maria – trabalho que a historiografia moderna já se encarregara de fazer por seu filho, dom João VI, dissipando a caricatura de rei covarde e preguiçoso, que carregava coxinhas de galinha nos bolsos do casaco. "Existe nos meios acadêmicos um movimento de revisão da importância desse período. Foi um momento de alinhamento intelectual e cultural de Portugal com outros países da Europa", diz o professor Paulo de Assunção, especialista em história ibérica. No caso da rainha, fica demonstrado que os quinze anos de seu reinado não foram usados apenas para desfazer as realizações do marquês de Pombal, ministro todo-poderoso do governo de seu pai, o rei dom José I.
Dona Maria foi a primeira mulher a assumir o trono português. Isso aconteceu em 1777, um período conturbado para o reino. Duas décadas antes, um terremoto havia devastado Lisboa. Em seguida, ascendeu ao cargo de primeiro-ministro o marquês de Pombal, que deu início à reconstrução da capital e promoveu um conjunto de reformas modernizadoras em Portugal e suas colônias, além de ter expulsado os jesuítas e comprado briga com boa parte da nobreza lusitana. Na sequência de um governo com tamanha voltagem, o reinado conciliador de dona Maria certamente não teve brilho. "Mas isso não deve ser lido como retrocesso", sustenta a autora. Sua principal contribuição foi à cultura. Em seu governo foram criadas a primeira biblioteca pública do país, a Escola de Belas-Artes e a Academia de Ciência de Lisboa, um centro de intelectuais cujo objetivo era divulgar o conhecimento produzido em diversas áreas. Além disso, a rainha libertou 800 presos políticos perseguidos por Pombal, prosseguiu na reconstrução de Lisboa e avançou no campo diplomático, costurando um acordo de paz com a Espanha, que disputava terras ao sul do Brasil. Foi um período de fortalecimento da economia. Criou-se um canal de comércio forte com a Rússia e reverteu-se o saldo negativo na balança comercial com a Inglaterra. Seu esforço para equilibrar as finanças do reino, aliás, teve reflexo direto no Brasil. Em seu governo, foi proibido o funcionamento de teares e manufaturas na colônia e reprimida com mão de ferro a revolta contra os impostos que resultou na Inconfidência Mineira.
Erch Lessing/Album/Latinstock |
UMA SOMBRA PERMANENTE |
A biografia reconstitui em detalhes a história da loucura da rainha, que tinha raízes em sua família. Felipe V, seu avô, era dado a acessos de fúria e costumava agredir a mulher. Seu tio Fernando VI, também doente, trocava o dia pela noite e obrigava toda a corte a fazer o mesmo, e chegou a ficar sem mudar de roupa por um ano. Mas a vida de dona Maria foi pontuada por tragédias que provavelmente contribuíram para a doença. Como seu pai não teve filhos homens e isso punha em risco a continuidade da dinastia dos Bragança, ela teve de se casar com um tio, dom Pedro III. Provavelmente por causa do parentesco tão próximo, perdeu cinco de seus seis filhos, três deles ainda crianças. Num breve intervalo de apenas dois anos, ela viu morrer o marido, o filho primogênito e uma filha. Em 1789, a eclosão da Revolução Francesa espalhou o terror entre as cabeças coroadas da Europa e perturbou profundamente a rainha.
Em fevereiro de 1792, quando voltava do teatro, dona Maria teve um acesso de delírio furioso em público. Tinha 57 anos. Ela gritava, pedia ajuda divina e dizia ter visões do inferno, delírio que passaria a atormentá-la daí em diante. Documentos mostram que já fazia pelo menos cinco meses que a rainha vinha alternando momentos de melancolia e agitação. Dona Maria foi examinada por 21 especialistas, que tentaram banhos frios, sangrias e evacuações forçadas. Entre esses médicos estava o inglês Francis Willis, que obtivera algum sucesso no tratamento do rei George III, o monarca louco da Inglaterra. Em julho, Willis diagnosticou que o caso da rainha era perdido, levando Portugal a um período de luto, em que foram suspensos os espetáculos públicos e a família real se fechou no palácio.
Museu de Lisboa |
RUMO AO BRASIL |
Dona Maria passou a viver reclusa no Palácio de Queluz, e dom João assumiu o governo. Ela só voltou a aparecer em público quando a corte se mudou para o Brasil. Foi embarcada à força. Aqui, fazia passeios de carruagem pelas ruas do Rio, e a população acostumou-se a vê-la esconder o rosto atrás do leque ao ser saudada pelos súditos. Mas a rainha tinha momentos de lucidez, o que é outro fato pouco conhecido. "Nesse período, ela teve muitos momentos de serenidade. Tanto que dom João VI a visitava quase diariamente, e passava mais de duas horas em sua companhia, coisa que dificilmente faria se dona Maria estivesse o tempo todo fora de si", diz a autora. Morreu em 1816, aos 81 anos. Uma placa de mármore no centro do Rio de Janeiro, no prédio do antigo Convento das Carmelitas, faz um resumo melancólico de seus oito anos no Brasil: "Pelas janelas deste prédio faziam-se ouvir as manifestações de demência da rainha-mãe".